Pessoas abusivas dependem de suas vítimas (e não o contrário)

Mais uma reflexão do livro em andamento “Reflexões conceituais sobre a violência”, um processo compartilhado de escrita.

Pessoas abusivas dependem de suas vítimas. A dependência se dá em vários níveis e pode ser analisada a partir dos aspectos emocionais, subjetivos e materiais, considerando-se a rede mais próxima ou mais ampla de relações sociais existentes entre a pessoa abusiva e o entorno. O aspecto emocional vem sendo analisado pela área da Psicologia, podendo-se consultar essa especialidade para aprofundar este aspecto. No caso das Ciências Sociais, esta trás ferramentas para pensarmos a dinâmica material de relações quando pautadas pela violência e poder, olhando para agressores, agressoras e vítimas a partir das interações sociais em seu contexto circunstancial e também em perspectiva histórica. Partindo desta estrutura de análise as ações exercidas por pessoas que violentam – pensando também agressores e agressoras em relações abusivas, ou seja, que praticaram ou praticam o abuso a longo prazo contra uma ou mais vítimas – podem ser analisadas a partir do jogo de forças estabelecido no ambiente entre agentes do abuso, apoiadores do abuso, pessoas que desconhecem o abuso e vítimas.

Há uma estratégia de perdas e ganhos colocada em prática pelos agentes do abuso em vistas a perpetuar a manutenção do contexto de vantagens obtido para si a partir da estrutura social gerada pela prática do abuso. Em outras palavras, a pessoa que abusa depende de suas vítimas ou de sua vítima para gerar ganhos sociais para si – em termos principalmente de companhia, apoio, presença, incentivo e estrutura coletiva da rede próxima e distante de pessoas, o que gera também mais ganhos materiais – a curto, médio e longo prazo. Um dos elementos existentes na relação social abusiva é a distorção da realidade e a consequente produção de uma interpretação coletiva descolada do verídico. A pessoa abusiva passa a ser interpretada como vítima e boa pessoa e que na relação em questão estaria se dedicando positivamente.

Como na realidade esta pessoa abusiva não pratica de fato tais relações, baseadas na genuína boa intenção – o que inclui amor, afeto, cuidado, companheirismo, respeito, prestação de socorro, etc – ela passa a produzir uma imagem distorcida de si mesma – que inclui tais elementos considerados positivos para a vida em sociedade – tendo como fonte da produção desta imagem a relação oposta, ou seja, a relação de abuso que estabelece com suas vítimas. A pessoa abusiva encontra justamente nas suas vítimas a possibilidade de gerar uma imagem de si mesma oposta ao que de fato é, ou seja, como uma pessoa respeitosa e amorosa, fundando esta distorção de interpretação no ocultamento das ações de violência que comete contra as vítimas. É vítima que vai prover a matéria-prima necessária para que a pessoa abusiva construa seu mundo fantasioso e de distorção de auto-imagem frente ao coletivo.

A pessoa abusiva precisa de suas vítimas para continuar existindo dentro da estrutura que funciona materialmente para si. Sem suas vítimas, a pessoa abusiva não é nada, apenas uma pessoa fraca obrigada entrar em contato com suas fraquezas e enfrentá-las sem roubar vida e possibilidade alheia, sem distorcer a realidade, ao contrário, encarando-a e lidando com suas próprias inseguranças e se dispondo a resolver problemas de forma madura na medida em que aparecem. Vítimas não dependem de abusadores e abusadoras, vítimas se encontram momentaneamente presas na estrutura social tecida pela pessoa abusiva. Impossibilidade momentânea de se desvencilhar não é dependência, é violência. A violência é justamente definida pela impossibilidade momentânea de reação da vítima. A dependência existente na relação de abuso é justamente da pessoa abusiva. Pessoas abusivas dependem de suas vítimas.

Daniela Alvares Beskow

Publicado em 06 de janeiro de 2023

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