Da série A precarização do trabalho em Artes Cênicas
A configuração do trabalho em artes cênicas no Brasil é complexa e heterogênea. As áreas do teatro, dança, performance, circo e música, além das linguagens audiovisuais para cinema e televisão, geram e são geradas por amplas redes de ações laboral, conectando de formas múltiplas artistas, públicos, contratantes, patrocinadores, órgãos públicos ou privados, parceiros de trabalho e espaços físicos. Na maioria dos casos são marcadas por uma característica em comum: o trabalho autônomo e precarizado.
O trabalho autônomo é aquele que ocorre por conta própria através do oferecimento de serviços temporários à empresas ou pessoas, sendo o horário de trabalho definido pelo profissional ou através de acordos com o contratante. É o oposto do trabalho assalariado, que parte dos seguintes pressupostos: habitualidade, pessoalidade, salário e subordinação. Nesse caso, o trabalhador comparece à um local de trabalho com frequência, sua mão de obra é insubstituível e identificada através de sua pessoa, ele recebe um pagamento constante e está inserido em uma rede de hierarquia.
O oferecimento de trabalho temporário à empresas, pessoas ou órgãos, ao contrário da constância salarial, promove um panorama de instabilidade financeira e também de não existência de direitos trabalhistas, como o décimo terceiro, férias, feriados e finais de semana pagos, abono salarial, hora extra e FGTS, além da inexistência de alguns bônus como vale refeição, vale transporte e pagamento de seguro saúde. Caso o trabalhador autônomo contribua para o INSS, lhe são concedidos alguns benefícios previdenciários. Como nem sempre isso ocorre, ou ocorre de forma intermitente, a situação profissional e pessoal do autônomo das artes cênicas, assim como sua aposentadoria, são bastante prejudicadas. Algumas contratações do serviço artístico autônomo exigem o cadastro de Pessoa Jurídica, o que transforma o artista em uma microempresa.
O ofício das artes cênicas é composto pela realização das seguintes atividades: 1) pesquisa de linguagem, laboratórios e treinos corporais/cênicos/criativos; 2) ensaios; 3) montagem de espetáculos/trabalhos; 4) e apresentação da obra. Essas etapas são realizadas de formas diversas em virtude da configuração de trabalho onde o profissional está inserido e a qual constrói. Na maioria dos casos, a situação autônoma do trabalho em artes cênicas ocorre não por opção, mas, por contingência, pois, são praticamente inexistentes os espaços públicos ou privados que contratam profissionais das artes cênicas para trabalharem enquanto artistas. Ao contrário, muitas vezes os contratam enquanto educadores/docentes.
Além da situação autônoma, existem outros casos de trabalho em artes cênicas. Nas áreas da dança e do teatro, uma porcentagem dos profissionais é contratada por companhias privadas ou públicas, geralmente através de audições e seleções, seja para projetos temporários (montagens) ou para permanência na companhia. Existem também os grupos/companhias que são formados através de relações de afinidade, vindo a se registrar enquanto empresa, cooperativa, associação e outros registros. É o caso do teatro de grupo, coletivos de dança ou teatro, companhias, ou mesmo espaços culturais que agregam artistas trabalhando sob o mesmo espaço. Os grupos vendem seus trabalhos e serviços para outras empresas, em sua maioria grandes espaços culturais e teatros, ou então escolas, empresas e governo. É o caso também dos artistas autônomos que realizam trabalho solo ou se juntam a outras artistas autônomos para projetos e montagens temporárias. No caso de autônomos que não possuem um CNPJ, compram o serviço de empresas terceiras para viabilizar a venda de seu trabalho, que os representam através do CNPJ da empresa.
De forma geral pode-se afirmar que os projetos onde trabalham os artistas autônomos são de curta duração; os projetos dos grupos e companhias, de média duração; e aqueles dos artistas contratados por companhias financiadas pelo Estado, compondo uma companhia ou um centro de pesquisa universitário, de longa duração.
Aos artistas autônomos cabe financiar toda sua estrutura de trabalho: sede/espaço físico para treinos e ensaios. Caso não disponha de uma sede, o artista/grupo aluga outro espaço, realiza parcerias ou concorre a editais públicos de cessão de espaço para trabalho. Se o espaço privado do artista/grupo dispor de estrutura necessária, a montagem e apresentação do espetáculo é realizada neste mesmo espaço. Caso contrário são buscados outros espaços, através da venda do espetáculo para teatros e espaços culturais ou aluguel desses espaços. O financiamento para o aluguel se dá via concorrência em editais públicos ou via caixa próprio. Já os artistas contratados temporariamente por companhias, trabalham no espaço da companhia, se apresentando junto à ela, através das vendas realizadas pela companhia. Os artistas contratados pelo Estado são os que se encontram em situação mais estável, pois recebem salário, dispõe de espaço físico e produção coordenada por terceiros para que o trabalho possa ser realizado. Na maioria dos casos as estratégias de trabalho cruzam essas situações, que vão desde aprovação em editais de cessão do espaço para ensaios sem remuneração; festivais que não remuneram os artistas; espetáculos que cobram ingresso porém não pagam o trabalho apresentado; ou aqueles que passam o chapéu através de contribuição voluntária, entre outros.
É o trabalhador autônomo e os grupos independentes – aqueles que não tem patrocínio ou apoio financeiro fixo – que mais trabalham sob poucas garantias, tendo que recorrer constantemente à vários elementos ao mesmo tempo para viabilizar a produção de suas obras. Por exemplo, por vezes o artista é selecionado em um edital que apenas fornece o espaço para apresentações. A renda para financiar a montagem e produção do espetáculo tem que ser buscada em outra fonte, assim como o pagamento para os ensaios. Outra fonte tem que ser buscada para a circulação da obra. Nesse sentido há um desmembramento da remuneração, exigindo um intenso trabalho de produção. Essa situação é vivida por grande parte dos artistas hoje no Brasil: o artista é obrigado a ser também produtor, já que a renda gerada pelo seu trabalho não é suficiente, na maioria dos casos, para pagar um profissional da produção. Ou seja, o artista se vê obrigado a trabalhar em duas áreas concomitantemente.
Quanto mais autônomo é o trabalho artístico, mais difíceis são as condições de trabalho, maior é a instabilidade financeira e na grande maioria dos casos há que se trabalhar ao mesmo tempo em outras áreas – além da área de produção -para que seu trabalho possa ser realizado. Uma área frequente de trabalho é a da educação, onde ensina seu ofício para outras pessoas. Ou então há que se trabalhar em área completamente distinta. O que chama a atenção é que grande parte do trabalho artístico no Brasil é autônomo, ou seja, a quantidade de artistas trabalhando de forma precarizada é altíssima.
Enquanto que os poucos assalariados das artes encontram-se em condição estável, os autônomos e grupos, dispondo ou não de um CNPJ, ficam completamente a mercê do mercado, onde vale a lei do mais forte – o mais habilitado a escrever e produzir projetos, por exemplo – e onde ganha quem dispõe de recursos financeiros para produção e quem atende aos anseios sociais e comerciais de consumo da arte, já que, empresas que pagam por espetáculos buscam na maioria das vezes linguagens mais próximas de um não questionamento de padrões estéticos e de visões de mundo e de um reforço do que é considerado vendável.
Importante lembrar que a precarização do trabalho surge de um contexto econômico onde há: grande oferta e pouca procura por determinados serviços; contexto generalizado de condições ruins de trabalho para certas profissões; e baixa valorização social de determinadas profissões. O resultado são profissionais trabalhando em excesso, recebendo pouco e tendo que trabalhar em mais de um emprego ao mesmo tempo, gerando inclusive problemas de saúde. Dada a grande concorrência e necessidade de pagar as contas, grande quantidade de profissionais se sujeita a essas condições ruins, baixando as expetativas coletivas e exigências profissionais e assim, reforçando o contexto coletivo de precarização. Não são os profissionais, porém, os principais responsáveis pela precarização do trabalho.
Os principais elementos responsáveis pela precarização do trabalho, focando a reflexão sobre profissões artísticas, são: 1) as instituições reguladores do trabalho, ou seja, o poder público, que falha em não regular as relações trabalhistas de forma a promover um contexto de justiça e equidade salarial e em não promover condições dignas para os trabalhadores das artes, deixando a maioria dos profissionais a mercê das flutuações econômicas e valores sociais que desmerecem o trabalho artístico; 2) as instituições contratantes que balizam a compra de espetáculos pelo valor que agregam à sua própria marca, geração de lucros para a empresa e valores que realizam a manutenção do status quo dos consumidores de arte, reforçando também a ideia de que arte é apenas um produto, ou seja, a característica mais importante da arte seria o status relacionado ao seu consumo e aquisição. Por esse motivo inclusive muitas vezes o público valoriza mais espetáculos cênicos pelos quais se pagou caro para assistir do que espetáculos gratuitos ou com ingressos baratos; e por fim os valores sociais difundidos por toda a sociedade que determinam quais profissões são dignas de bons pagamentos e quais não.
Essas últimas são questões para o próximo ensaio sobre a precarização do trabalho em artes cênicas. Concluo com o pensamento de que o trabalho terceirizado e precarizado é cada vez maior no Brasil, sendo um fator de grande urgência para reflexão e transformação.
Daniela Alvares Beskow
10 de agosto de 2017