Eleições 2022 e o Brasil que acredita em mentiras. Há muito trabalho pela frente

Defesa do controle dos corpos; deficiência no entendimento sobre a história do país; defesa intransigente da meritocracia sem atentar para os processos históricos de violência, privações e desigualdades os quais foram submetidos grupos populacionais; discurso baseado em bordões carentes de argumentos, repetições sem o pleno entendimento de seu significado; replicação de dados errados ou distorcidos sobre a economia brasileira passada e presente; negacionismo da realidade; e enfim, interpretação baseada na mentira. É sobre este último ponto que será desenvolvida a reflexão a seguir, tendo em mente que esta também se sustenta a partir dos pontos anteriores, que serão melhor desenvolvidos em futuros textos.

Se por um lado há intensa produção e difusão de notícias falsas, por outro, há quem nelas acredite. Enquanto a gravidade do primeiro ponto se dá pela intenção e crime da mentira, enganação, falsificação, fraude e convencimento a partir de dados distorcidos e mentirosos, levando à interferência em eventos de grande importância nacional, o segundo acontecimento é também grave, pois, expressa a lacuna nos processos educacionais e de interpretação da realidade por parte de adultos na sociedade contemporânea. Interpretar uma notícia, um discurso, requer o uso de ferramentas que visam auxiliar no processo relacional com o que está sendo lido, ouvido, acessado.

Um dos pilares básicos da interpretação é a habilidade de comparação. E para comparar é preciso ter referências, não apenas uma, mas, várias. A função da referência é servir como uma base a partir da qual se constrói desenvolvimentos. É pressuposto que essa base seja resultado de intenso e permanente processo de investigação e revisão para que seja possível a sua utilização enquanto estrutura interpretativa, enquanto conjunto de premissas. Pois, caso as premissas estejam erradas, também serão erradas as conclusões. É preciso, pois, trabalhar nas premissas.

Não é preocupante que premissas sejam questionadas, pelo contrário, é um processo necessário e que deve ser realizado de forma ininterrupta. Quanto mais checagem dos pressupostos forem realizadas, mais probabilidade há em existir coerência e fidedignidade nestes elementos. O problema está em questionar pressupostos e conclusões sem as necessárias ferramentas de verificação ou tendo como comparação outros pressupostos e conclusões baseados em falsidades e não-investigação.

O fato de grande parte das eleitoras e eleitores de Bolsonaro ter orientado seu voto a partir de mentiras coloca a sociedade brasileira diante de um grande desafio: é preciso educar os adultos. Precisamos de mais e também institucionais ambientes coletivos de reflexão, de educação coletiva, de formação para a cidadania. É preciso salas de aula, educação popular, educação formal e não formal para as pessoas no momento pós-escola, pós-universidade. As sociedades precisam fomentar um processo contínuo de construção do conhecimento para que adultos e adultas continuem desenvolvendo a habilidade de interpretar informação, gerar conhecimento, se relacionar com diversidades de ideias e ter no conhecimento um bote salva vidas para contextos de dificuldades e resolução de problemas.

Como apontado no início a crença em mentiras se apoia em outros processos para os quais também se deve olhar com atenção. Há uma tendência em acreditar em qualquer coisa, independente da veracidade, desde que venha junto à promessa de manter contextos nos quais se deposita intensa crença e afinidade. Contextos que reforçam privilégios, concentração de poder, subjetividades ancoradas em sistemas simbólicos persistentes, ainda que violentos e promotores de desigualdades à curto, médio e longo prazo. Sistemas sociais que reforçam aceitação social baseada na supressão da liberdade e felicidade individual e coletiva. Que ressalta o orgulho e a arrogância em detrimento da cooperação e ajuda mútua. Sistemas que primam pelo núcleo familiar enquanto sustentador de maior importância aliado à um coletivo que seria apenas a ampliação das várias famílias e sua estrutura de funcionamento. Um coletivo alijado do desenvolvimento de bens comuns, sendo apenas uma intersecção entre individuais, pautados pelo mérito simplesmente. Mentiras são creditadas pois prometem manter todos esses sistemas de individualismo, violência, competição sem condições iguais, manutenção de poderes patriarcais, racistas, homofóbicos, classistas. E estes, por sua vez, são mantidos por forças históricas milenares que insistem em permanecer.

A transformação virá também pela reeducação, pelo desenvolvimento da autonomia intelectual e através das condições que permitam que a estruturas de poder sejam questionadas. Enquanto a violência, o poder e o afastamento da realidade enquanto forma de alívio temporário-permanente continuarem sendo a referência de estabilidade e segurança para a maioria das pessoas – seja em forma de consumo, religião, notícias falsas, individualismo e sucesso subjetivo sem nunca se questionar sobre o todo – novas ondas negacionistas virão. Mecanismos de alívio advindos da alienação provém também da falta de acesso ou acesso precário à alternativas de sobrevivência, abandono do indivíduo pelo coletivo, ausência do Estado e da sociedade civil como garantidores da cidadania e outros fatores, sendo também importante sua interpretação a partir de parâmetros que versam sobre a emoção e o afeto. Crises, entendidas também como momentos de transformação de estruturas trazem consigo também o apego ao velho, ao conhecido ou ao novo que possa se assemelhar ao que já se sabe, à certeza já experenciada. Se for preciso inventar fatos para evitar a mudança, pessoas não pouparão esforços para fazê-lo, muitas vezes agindo em pânico, ou seja, sem razão. Novas forças baseadas em realidade distorcida continuarão a se desenvolver, organizadas não apenas para as próximas eleições, mas, com forte presença no cotidiano coletivo.

Estamos prestes a iniciar um novo governo, um novo momento nesta atual história do Brasil. E nesta etapa teremos que lidar com os estragos históricos potencializados pelo governo que está de saída. O patriarcado, o racismo, a heterossexualidade enquanto norma, o capitalismo e todas as formas de poder e violência não vão nos deixar tão facilmente. Precisamos enfrentá-los de frente e com muita disposição. 2023 já começou e 2022 é um recado para a vida daqui pra frente. Em momento de crise aguda as pessoas se agarram ao que é conhecido. E o que é conhecido, infelizmente, são os sistemas de violência e concentração de poder.

Para além da educação cotidiana de pessoas adultas é preciso descentralizar poder, é preciso democratizar, cooperar, dividir. É preciso historicamente reparar, enfrentar a história, punir, desculpar. É preciso cotizar como ações emergenciais, é preciso proporcionar para todos e todas, bem estar. É preciso fomentar, é preciso constitucionalizar. Saúde, educação, moradia, alimentação. Arte, cultura, reflexão. Tecnologia, renda, distribuição. Terra, território, ancestralidade, identificação. Felicidade, alegria, disposição. Precisamos de um país justo e que não desrespeite sua população.

Temos muito trabalho pela frente, o ano novo apenas começou.

Daniela Alvares Beskow, escritora e cientista política

15 de novembro de 2022

Acompanhe: @danielaalvaresbeskow