Política de reserva de vagas de acordo com o critério de proporcionalidade

Reserva de vagas de acordo com o critério de proporcionalidade

Introdução1

Cotas são necessárias

Pode-se definir pelo menos três, os grupos que sofrem violência no Brasil e que são majoritários, ou seja, que numericamente constituem maioria em relação a outros grupos: o grupo das pessoas negras; o grupo das mulheres; e o grupo das pessoas pobres. Dos grupos minoritários e que também sofrem violência enquanto grupo, podem ser citados: pessoas com deficiência (PCD); pessoas homossexuais (gays e lésbicas); pessoas indígenas, que antes da chegada dos europeus ao território constituíam um grupo majoritário e que vieram a se tornar um número minoritário devido ao extermínio dessa população ao longo dos últimos séculos; e pessoas trans.

De caráter indiscutível, a existência de cotas em seleções para cargos públicos, vagas na universidade e outras seleções são de extrema importância para reparar violências históricas cometidas contra grupos, sejam eles majoritários ou minoritários. Violências que na maioria dos casos se ampararam em leis ao longo da história, impedindo assim, de forma jurídica, direitos e a concretização de vidas dignas e para a totalidade da população. Para citar alguns exemplos: as leis portuguesas e brasileiras que permitiram a escravização (sequestro, trabalho forçado, assassinato, violências físicas e sexuais, tortura, cessão das liberdades individuais e coletivas) de pessoas negras e indígenas no Brasil2; a lei que impedia a presença de pessoas negras nas escolas públicas3; as leis que estabeleciam inúmeras punições para homens e mulheres homossexuais incluindo açoites e pena de morte4; as diferentes leis que impediam pessoas pobres, pessoas escravizadas, pessoas jovens, analfabetos e mulheres de votarem e serem votadas nas instâncias representativas da sociedade nos vários momentos da historia do Brasil5; a lei que impedia a mulher casada de trabalhar se não tivesse a autorização do marido6; e muitos outros exemplos. Essas leis afetaram não apenas as pessoas que viviam na época em que eram vigentes, mas, sucessivas gerações de pessoas até os dias atuais, através dos efeitos contextuais a longo prazo. São violências que ocorrem em rede, ou seja, através da relação com outros inúmeros elementos que reforçam e replicam essas violências, e por isso, são denominadas violências estruturais. A eliminação de violências estruturais demanda soluções igualmente estruturais. Reserva de vagas em seleções constitui apenas um dos passos em direção à transformação dessas estruturas.

Nos últimos anos as cotas vêm sendo implementadas em dois setores públicos no Brasil: seleções para vagas em universidades públicas e seleções para cargos de trabalho na área pública federal. Os sistemas de cotas funcionam a partir de regras diferentes nesses dois tipos de seleções. Inclusive entre as universidades, há diferenças entre as metodologias.

Na área das empresas privadas também tem se disseminado seleções que buscam priorizar grupos que vem sendo violentados historicamente. Observam-se seleções que oferecem vagas apenas para profissionais mulheres ou apenas para profissionais LGBT ou apenas para candidatas/os negras e negros a partir de critérios de seleção nem sempre explícitos.

Não há ainda leis que estabelecem cotas para mulheres, pessoas homossexuais ou pessoas LGBT em seleções públicas para vagas de emprego ou vagas para estudar nas universidades. É importante pontuar que em relação ao grupo das mulheres, existem desde 19957 as cotas para candidatas às eleições municipais e desde 19978, para eleições municipais, estaduais e federais, com implementação de cotas do fundo partidário e tempo de TV proporcionais legisladas no ano de 20159.

Cálculos e diferentes formas de cotas

Há diferentes formas de se fazer o cálculo sobre a porcentagem da reserva de vagas e sobre a forma de concorrência a essas vagas. É preciso aprofundar a reflexão sobre o tema, para que as seleções sejam cada vez mais justas e contribuam para reparar grupos que vem sofrendo violências históricas.

As cotas nas instituições federais de educação superior foram implementadas a partir da Lei 12.71110 de 2012 e determina como filtro principal a reserva de vagas para alunas e alunos provenientes da rede pública de ensino. Dentro da cota de alunos das escolas públicas, há subdivisões para cotas para pessoas pretas e pardas, para pessoas com deficiência e para pessoas com renda per capita abaixo de um salário mínimo e meio. Este modelo é exemplificado pelo fluxograma no próximo item do texto.

Há autonomia para universidades estaduais elaborarem métodos próprios de seleção através do sistema de cotas. Na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), por exemplo, há também um vestibular separado para pessoas indígenas, implementado recentemente e outras seleções, uma inclusive por mérito, destinada a aprovar estudantes a partir de seu desempenho em olimpíadas científicas e competições de conhecimento realizadas previamente ao vestibular, sem necessidade de prestarem a prova para ingresso na universidade.

A quantidade de vagas oferecidas para as cotas em algumas universidades estaduais, como a UNICAMP e a Universidade de São Paulo (USP) não estão apoiadas em critérios de proporcionalidade em relação à quantidade desses grupos na sociedade. Porém, estas duas universidades afirmam que tem como meta ampliar paulatinamente as cotas étnico-raciais até que elas sejam proporcionais. No caso das pessoas negras, este número está em torno de 37% do total da população no estado de São Paulo.

O fato de existir a meta para equiparar a porcentagem de vagas das cotas à proporção dessas pessoas na sociedade é positivo, pois garante que os espaços de estudo, pesquisa e trabalho sejam um espelho numérico da existência dessas pessoas na sociedade. É apenas uma metodologia possível, dentre as várias medidas ainda a serem tomadas para que se alcance a justiça individual e coletiva.

A matemática das cotas

Analisemos dois exemplos de políticas de cotas: a seleção do vestibular para ingresso em universidades públicas federais, determinada pela Lei 12.711 e alterada em 2016; e a seleção para cargos federais do governo federal regida pela lei 12.99011 de 2014.

A lei que versa sobre as cotas em universidades determina que 50% das vagas sejam reservadas para estudantes que tenham cursado o ensino médio integralmente em escolas públicas. Destas, metade – ou seja, 25% do total de vagas oferecidas pela universidade – se destina a estudantes com renda familiar per capita inferior a um salário mínimo e meio e a outra metade (também 25% do total), a estudantes com renda familiar per capita superior a um salário mínimo e meio. Em cada uma dessas subdivisões, há também as cotas para pessoas negras e indígenas e também para pessoas com deficiência, estabelecidas de forma proporcional à quantidade numérica desses grupos na população, de acordo com o censo anterior do IBGE no ano em questão12.  

O modelo é exemplificado de acordo com o fluxograma abaixo, disponibilizado no site do Ministério da Educação (MEC)13:

Nos primeiros quatro anos da lei, foi determinado que as/os estudantes cotistas concorressem tanto às vagas das cotas quanto as da ampla concorrência. Depois, ficaria a cargo de cada universidade decidir manter ou não o modelo. Atualmente observa-se que várias universidades adotaram o modelo de inscrição no vestibular a partir da divisão entre dois grupos: o grupo das cotas e o grupo da ampla concorrência. Neste caso, a/o estudante que se enquadra nos critérios para vagas cotistas, pode concorrer apenas em um dos grupos, o grupo escolhido pelo próprio estudante. Dessa forma, se estabelece dois grupos diferentes de seleção, que, em geral, tem notas de corte diferentes – lembrando que a nota de corte é a nota mínima alcançada pelas/os ingressantes do ano anterior e que passa a valer como a nota mínima a ser pontuada para ingressar no ano corrente.

São também diferentes as possibilidades de métodos que organizam a distribuição de vagas remanescentes. No vídeo “Cotistas na ampla concorrência? Entendendo a questão”14 alguns exemplos são demonstrados através de fluxogramas: uma opção é que as vagas remanescentes tanto das cotas quando da ampla concorrência sejam acessadas por todos os inscritos que estejam nas listas de espera, tanto a lista de espera do grupo das cotas quando a lista de espera do grupo da ampla concorrência. Outra opção é que as vagas remanescentes de cada modalidade sejam disponibilizadas apenas para as pessoas inscritas nesta ou naquela modalidade.

A lei que institui a reserva de vagas para cargos públicos federais define que 20% das vagas sejam reservadas para candidatas e candidatos negros. Esta lei estabelece que as/os candidatas/os podem concorrer concomitantemente tanto para as vagas das cotas quando para as vagas da ampla concorrência. Ou seja, caso os candidatos cotistas tenham pontuado com nota de corte suficiente para concorrer no grupo da ampla concorrência, eles podem concorrer também neste grupo, ao mesmo tempo em que concorrem para o grupo das cotas.

Os exemplos citados demonstram as várias possibilidades de se aplicar a metodologia da reserva de vagas: 1) candidatas/os que se enquadram nos critérios para vagas cotistas concorrem ao mesmo tempo nos dois grupos: o grupo de cotas e o grupo da ampla concorrência; 2) candidatas/os tem que optar em concorrer para uma das duas modalidades: o grupo de cotas ou o grupo da ampla concorrência; 3) as vagas reservadas podem ser atreladas à proporção que se encontram os indivíduos desse grupo na população ou serem definidas por outros critérios; 4) pode haver um primeiro filtro de reserva de vagas a partir do qual se define outros filtros; 5) pode haver um ou mais filtros de reserva de vagas, que ocorrem ao mesmo tempo sem relação um com o outro; 6) as vagas remanescentes podem, por sua vez, ser distribuídas de diferentes formas, restringindo ou ampliando o acesso.

Reserva de vagas para a população de acordo com a proporcionalidade

As políticas de reserva de vagas e cotas que vem sendo implementadas no Brasil – cotas para mulheres nas eleições; cotas do fundo partidário e tempo de TV proporcional para mulheres candidatas e homens candidatos; cotas para pessoas de baixa renda, oriundas de escola pública, negras, indígenas e com deficiência nas seleções de de vestibular em instituições federais de educação superior; e cotas para pessoas negras em seleções para cargos públicos no âmbito federal – são importantes. São passos necessários, porém, insuficientes. É preciso avançar.

A primeira questão que se coloca diz respeito à questão da proporcionalidade. As porcentagens destinadas as reservas de vagas dentro de cada política pública atual são diferentes das porcentagens referentes aos grupos atendidos pelas políticas, existentes na sociedade. Ou seja, tais reservas não são proporcionais em relação aos grupos atendidos pelas políticas, encontrados na sociedade. Por exemplo, a reserva de 50% das vagas para pessoas oriundas de escola pública em seleções de vestibular, não corresponde à realidade atual da porcentagem de estudantes das escolas públicas na sociedade brasileira que é de 80%e15. O mesmo ocorre com as demais reservas. A reserva de 30% das vagas para mulheres candidatas em cada partido não corresponde à quantidade de mulheres na população, que é de 51,8%16. A reserva de 20% das vagas para pessoas negras em seleções para cargos públicos federais não corresponde à quantidade de pessoas negras na população, que é de 56,10%17. No caso da reserva de vagas para pessoas com deficiência em seleções para vestibular, o total de vagas reservadas é de 5%. No entanto, atualmente o número de pessoas com deficiência no Brasil corresponde à 6,7%18. Neste caso houve uma mudança neste número que em 2010 foi avaliado como sendo de 23,9%.

É importante pensarmos as reservas de vagas em áreas importantes da sociedade – tal como as eleições para políticas e políticos, as instituições de ensino e cargos de trabalho nas instituições públicas – pois elas são espaços significativos tanto para a construção da vida coletiva como das vidas individuais. São também elementos da vida coletiva que são financiados ou geridos pelo poder público, ou seja, com dinheiro da população e no caso das eleições, estruturados através de processos de decisão onde a população é parte importante, neste caso, o voto.

Pensemos primeiro nas eleições. A eleição é um processo importante de tomada decisão onde a população adulta escolhe as pessoas que irão gerir a sociedade durante quatro anos. Há este primeiro elemento: a população define esta parte importante da vida política. O segundo elemento é a composição do grupo das pessoas eleitas. As pessoas eleitas são elemento importantíssimo na vida social, pois, são elas que irão definir e administrar as políticas públicas que organizam a vida das pessoas a nível municipal, estadual e federal. Há um longo debate a respeito da relação entre origem e características da pessoa eleita com as características das decisões que ela toma no que diz respeito à vida pública no exercício de seu trabalho enquanto política ou político. Há uma corrente que afirma que há uma tendência em a pessoa eleita priorizar nas suas políticas, pessoas e grupos pertencentes ao seu grupo de origem – origem social/econômica, de classe sexual, de orientação sexual e raça/etnia, e outras. Outra corrente afirma que, independente de sua origem, a pessoa eleita pode vir a elaborar políticas públicas que contemplem todos os tipos de pessoas. A noção defendida por esta corrente é um dos objetivos da democracia representativa, pensada também através da ética: políticas públicas devem atender a população como um todo, não privilegiando nenhum grupo, ou seja, não desfavorecendo nenhum grupo, em virtude de pertencer àquele grupo. Em outras palavras e pensando a partir da Constituição do Brasil, as políticas públicas deveriam ser a afirmação e desenvolvimento da Constituição. Infelizmente não é o que vemos na prática. A atual Constituição, elaborada em 1988 e que prevê um Brasil sem desigualdades, onde à todas as pessoas é garantido o direito à vida, à educação, à saúde, e assim por diante, é atualmente contrastada com uma situação extrema no país, onde a regra é desigualdade econômica e a violência praticada contra certos grupos da sociedade. Ao mesmo tempo os dados demonstram que a maior parte das pessoas eleitas desde 1989 no Brasil são homens e brancos. Provavelmente homens heterossexuais e de situação econômica favorável. Ou seja, são pessoas oriundas da parcela mínima da população. É urgente avaliarmos, enquanto sociedade, se as políticas públicas que vem sendo implementadas nas últimas décadas tem relação direta com a origem e características das pessoas eleitas. Já são inúmeras as reflexões que afirmam a existência dessa relação direta. Foram elas, inclusive, que alimentaram o debate sobre a necessidade da reserva de vagas para mulheres nos processos eleitorais.

Neste sentido e dado o atual panorama é importante pensarmos a importância da proporcionalidade em relação às pessoas que gerem o país. Se o Brasil tem 51,8% de mulheres, então que seja 51,8% mulheres que ocupem os cargos políticos e pensem políticas públicas que atendam não apenas os homens, mas, também as mulheres. Pois, é gritante a falta de leis e regras de funcionamento na sociedade brasileira que garantam, por exemplo, uma vida livre de violências sexuais para meninas e mulheres. Basta ver o alto número de estupro de meninas, de meninas que engravidam, de mulheres adultas estupradas por seus maridos ou namorados. Basta observar as ruas e ver que mulheres não tem o direito sequer de andar em paz nestes espaços sem sofrer violências verbais com conteúdo sexual ou de trabalharem tranquilas sem a ameaça de assédio sexual. A pergunta que fica é: porque os políticos homens não estão propondo políticas públicas efetivas para eliminar este cenário? Seria porque se beneficiam deste ou então porque não são vítimas deste? Independente da resposta, é visível que precisamos de mais mulheres nos cargos de administração pública. Seria um passo importante para a transformação deste cenário de violência contra as mulheres no país. Outros passos são importantes, como a implementação de cotas raciais, de origem econômica, referentes à orientação sexual e outras no sistema eleitoral. No caso destas cotas, o principal argumento é de que as pessoas integrantes destes grupos vem sendo excluídas das políticas públicas no Brasil nas últimas décadas. Não deve ser apenas uma coincidência que as pessoas eleitas no Brasil vem sendo de pessoas que não integram esses grupos.

As eleições são elemento complexo de se pensar, pois, há dois elementos envolvidos: as pessoas que elegem e as pessoas eleitas. E o processo de eleição é igualmente complexo, pois, envolve não apenas o livre arbítrio em escolher esta ou aquele candidato, mas, um conjunto de fatores que envolve mídia, poder econômico, relações de poder e subjetividades. Quando pensamos na importância da política de reserva de vagas para processos seletivos de trabalho em órgãos públicos ou vagas para estudar em instituições públicas, a importância do tema é igualmente existente, porém, há talvez, uma rede menor de fatores.

Ao meu ver, o principal fator referente à processos seletivos de trabalho em órgãos públicos e vagas para estudar em instituições públicas no que diz respeito à políticas de reserva de vagas, é o fator da igualdade de oportunidades para os diversos grupos na sociedade. Como já apontado, certos grupos da sociedade vem sofrendo desvantagem em diversos espaços sociais, devido à violência cometida contra eles, vinda de grupos socialmente privilegiados. Uma das desvantagens é o acesso à ensino de qualidade. Esta desvantagem, por sua vez, leva à desvantagem em processos seletivos para trabalho. Mas, não apenas. O simples fato de a pessoa pertencer ao grupo das pessoas negras ou ao grupo das mulheres lésbicas, por exemplo, por si só já serve como justificativa para empresas não contratarem esta pessoa para um cargo, seja esta pessoa negra ou esta mulher lésbica altamente qualificada para ao cargo. Esta justificativa é forjada nos contextos do racismo e da lesbofobia, amplamente apoiada pelos grupos privilegiados da sociedade brasileira.

Nestes dois casos – do ensino e do trabalho – é urgente que existam políticas de reserva de vagas para grupos historicamente violentados e desfavorecidos na sociedade brasileira. É uma política de reparação que visa o estabelecimento da democracia, na prática e não apenas na teoria.

Aprofundando o debate, sugiro pensarmos a reserva de vagas de acordo com o critério de proporcionalidade em todos os processos seletivos para trabalho no país. Não apenas em órgãos públicos, mas, também em empresas privadas. Não apenas em cargos públicos, mas, também em editais públicos, como por exemplos os editais na área de artes, que constituem grande parte das políticas públicas nesta área. Nestes editais, por exemplo, ocorre a seleção de artistas e grupos de artistas para que executem obras artísticas e disponibilizem essas obras ao público. Ou seja, não há a contratação de artistas para trabalharem enquanto funcionários públicos em um local físico de trabalho, tal como existe para as funções administrativas dos órgãos públicos. A seleção é sempre destinada para artistas trabalharem de forma autônoma, realizando suas obras em espaços públicos ou privados, mas, de forma independente, muitas vezes sem nenhuma estrutura física do poder público para a realização de suas obras.

É preciso que as oportunidades de estudo, trabalho e as relacionadas ao processo eleitoral correspondam à realidade da população. Não faz sentido que mais da metade da população seja composta de mulheres e que a porcentagem de mulheres nos cargos eleitos seja de aproximadamente 10%. Não faz sentido que mais da metade da população seja negra e que majoritariamente a população branca esteja em empregos com bons salários. Não faz sentido que haja parcelas da população que sejam homens homossexuais, mulheres lésbicas ou pessoas com deficiência e que essas parcelas não estejam ocupando cargos em órgãos públicos.

Todos os grupos violentados da população no Brasil tem tido menos acesso às oportunidades de trabalho, de estudo e as relacionadas ao processo eleitoral, devido à violência socialmente autorizada contra esses grupos, que ocorre durante toda a vida dos indivíduos pertencentes à esses grupos. Na corrida da vida, há mais obstáculos no meio do caminho destas pessoas. Deve ser um trabalho concomitante: a transformação da sociedade para que não haja mais esses obstáculos e o fomento imediato de oportunidades para essas parcelas da população, que no conjunto, são a maioria. O objetivo final é que naturalmente todos esses grupos estejam representados nos espaços coletivos da sociedade. Enquanto as violências não são eliminadas, o Estado deve aplicar políticas públicas que estabeleçam a igualdade de oportunidades no final da corrida. Todas e todos tem o direito ao trabalho, ao estudo e à participação da vida política do país. E mais, direito à trabalhos dignos e à contextos dignos de estudo.

Por estas razões, defendo e proponho o estabelecimento de reserva de vagas em processos seletivos para trabalho, estudo e processo eleitoral, através do critério de proporcionalidade em relação à porcentagem encontrada na população. A proposta é como segue, através de um exemplo municipal:

A proposta acima (nota 19) se encaixa no modelo onde um primeiro filtro origina outros filtros, sendo a única forma possível de se colocar em prática cotas para vários grupos ao mesmo tempo a partir do princípio de proporcionalidade. No caso proposto, não haveria grupos de cotas e grupo da ampla concorrência e sim, vários sub-grupos, representando dessa forma, todos os grupos da sociedade e suas proporções encontradas na sociedade.

No caso de empate dentro de cada sub-grupo, este se resolveria a partir do sorteio.

No caso de vagas remanescentes em qualquer sub-grupo, estas seriam preenchidas através da maior nota, independente de qual sub-grupo estiver.

Seguindo o exemplo no fluxograma acima do município de Campinas, localizado no estado de São Paulo, a primeira subdivisão poderia ser realizada através dos grupos étnico-raciais. Todas as seguintes subdivisões seriam realizadas através da porcentagem que se encontram na população. Primeiro, os subgrupos das mulheres e o dos o homens. Em cada um desses subgrupos, a divisão por renda: mais de um salário mínimo e meio e menos de um salário mínimo e meio. E, a seguir, cada um desses subgrupos, divididos em 6: Lésbicas e gays; pessoas trans; pessoas acima de 60 anos; pessoas com deficiência; mães ou pais solos; e demais vagas, ou seja, pessoas que não se encaixam em nenhum dos 5 subgrupos.

As porcentagens demonstradas no fluxograma acima seriam diferentes para fluxogramas de outros municípios, pois, cada município apresenta porcentagens diferentes em relação aos grupos citados.

Pensando em um fluxograma para seleções federais, os números também seriam diferentes. Partindo da primeira divisão, como exemplificado acima, a divisão a partir do critério étnico-racial. No Brasil, atualmente a porcentagem de pessoas negras (pretas e pardas) é de 56,2 (nota 20). Ao contrário do município de Campinas, no Brasil, a população negra é maioria, logo, pensa-se a importância da ocupação das seleções federais por pessoas negras, a partir desta porcentagem majoritária. A população branca no Brasil corresponde à 42,7% e o conjunto das amarelas e indígenas, à 1,1%.

Um passo ainda mais rápido para o processo de eliminação das violências, seria a reserva de vagas em porcentagem superior à porcentagem encontrada na sociedade, em relação aos grupos violentados, como outra forma de reparação histórica. Esta proposta fica para o próximo ensaio.

Daniela Alvares Beskow

18 de fevereiro de 2021

1Trecho do ensaio “Reserva de vagas no edital “Ações em Rede” da cidade de Campinas e reflexões sobre cotas”, escrito por Daniela Alvares Beskow em 26 de agosto de 2020 e publicado em Palavra e Meia. Disponível em: http://www.palavraemeia.com/ensaios/reserva-de-vagas-no-edital-acoes-em-rede-da-cidade-de-campinas-e-reflexoes-sobre-cotas/

2“Legislação sobre escravos africanos na América Portuguesa”. Livro organizado e compilado por Silvia Hunold Lara, 2000. Acesse: http://www.larramendi.es/i18n/catalogo_imagenes/grupo.cmd?path=1000203

3“Escravos, libertos, filhos de africanos livres, não livres, pretos, ingênuos: negros nas legislações nacionais do séc. XIX”. Artigo de Surya Pombo de Barros, 2016. Acesse: https://www.scielo.br/pdf/ep/v42n3/1517-9702-ep-42-3-0591.pdf

4“História da criminalização da homossexualidade no Brasil: da sodomia ao homossexualismo”. Iniciação científica escrita por Érika Aparecida Pretes e Túlio Vianna. Publicada em 2008 no livro “Iniciação científica. Destaques 2007” organizado por Wolney Lobato, Cláudia de Vihena Schayer Sabino e João Francisco de Abreu. Acesse em: https://vetustup.files.wordpress.com/2013/05/historia-da-criminalizacao-da-homossexualidade-no-brasil-da-sodomia-ao-homossexualismo-tc3balio-l-vianna.pdf

5“A história do direito ao voto no Brasil”. Monografia escrita por Alvina Gonçalves Azevedo, 2018. Acesse: https://repositorio.ufu.br/bitstream/123456789/22181/3/Hist%C3%B3riaVotoBrasil.pdf

6“A mulher no código civil de 1916. Ou, mais do mesmo”. Artigo de Teresa Cristina de Novaes Marques, 2004. Acesse em: periódicos.unb.br através da digitação do título e nome da autora.

7Lei 9.100 de 29 de setembro de 1995. Acesse: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9100.htm

8Lei 9.504 de 30 de setembro de 1997. Acesse: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9504.htm

9Lei 13.165 de 29de setembro de 2015. Acesse: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13165.htm

10Lei 12.711 de 29 de agosto de 2012. Acesse: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12711.htm

11Lei 12.990 de 9 de junho de 2014. Acesse: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2014/lei/l12990.htm

12http://portal.mec.gov.br/cotas/perguntas-frequentes.html

13http://portal.mec.gov.br/cotas/sobre-sistema.html

14“Cotistas na ampla concorrência? Entendendo a questão”. Video de Matheus Figueiredo. Acesse: https://www.youtube.com/watch?v=Z13glwPWkOI

15“Escolas da rede pública atendem mais de 80% dos alunos do ensino fundamental e médio, aponta IBGE”. Matéria de julho de 2020 no Portal G1. Disponível em: https://g1.globo.com/educacao/noticia/2020/07/15/escolas-da-rede-publica-atendem-mais-de-80percent-dos-alunos-do-ensino-fundamental-e-medio-aponta-ibge.ghtml

16“Quantidade de mulheres e quantidade de homens”. Dados do Portal IBGE Educa. Disponível em: https://educa.ibge.gov.br/jovens/conheca-o-brasil/populacao/18320-quantidade-de-homens-e-mulheres.html

17Dia da consciência negra: números expõe desigualdade racial no Brasil. Matéria do Portal da Agência Lupa. Disponível em: https://piaui.folha.uol.com.br/lupa/2019/11/20/consciencia-negra-numeros-brasil/

18“IBGE adota mudança para coleta de dados sobre pessoas com deficiência”. Matéria do Portal Diversa Educação Inclusiva na Prática. Disponível em: https://diversa.org.br/ibge-mudanca-dados-pessoas-com-deficiencia/

Nota 19 Trecho do ensaio “Reserva de vagas no edital “Ações em Rede” da cidade de Campinas e reflexões sobre cotas”, escrito por Daniela Alvares Beskow em 26 de agosto de 2020 e publicado em Palavra e Meia. Disponível em: http://www.palavraemeia.com/ensaios/reserva-de-vagas-no-edital-acoes-em-rede-da-cidade-de-campinas-e-reflexoes-sobre-cotas/

Nota 20 “Cor ou raça”. Dados do Portal IBGE Educa. Disponível em: https://educa.ibge.gov.br/jovens/conheca-o-brasil/populacao/18319-cor-ou-raca.html