Em tempos de crise, a corda sempre arrebenta para o lado do mais fraco

Uma crise é definida pela perturbação à um sistema. Se formos à fundo no conceito, observa-se que os sistemas de violência: patriarcado, capitalismo, racismo e heterosexualidade, são também crises, pois, são perturbações do sistema da não-violência. Já vivemos em crise constante, o que proporciona vidas não dignas para parcelas da população e por outro lado, abundância, recursos, espaços e possibilidades de tomada de decisão para outras parcelas.

Pandemias que ocorrem em sociedades que já são estruturadas na violência, na dominação, desigualdade de acessos e exploração, aprofundam o cenário de violência. Todas as violências decorrentes dos quatro regimes de dominação existentes, são intensificadas no contexto de quarentena.

O capitalismo é um sistema onde a maioria das pessoas já não tem o suficiente para uma vida digna. Vivem para trabalhar e não o oposto, como deveria ser. A maioria dos salários e das rendas no capitalismo não são suficientes para arcar com uma alimentação nutritiva, com a compra de uma casa própria, com aluguéis de espaços desejáveis para se morar. Essas rendas também não pagam o tempo suficiente de lazer. Tratamentos de saúde são adiados ou nunca realizados devido à falta de dinheiro. O tempo mínimo necessário de sono também não existe, pois, a exploração do trabalho não permite. Pessoas trabalham em dois, três empregos para pagar o mínimo de que necessitam. Em grandes cidades, perdem horas no trânsito ou apertadas em trens ou metrôs, o que intensifica os problemas de saúde. Durante uma pandemia, as condições de trabalho se agravam, pois, não há um contexto geral que permita o trabalho à distância. No Brasil, com aproximadamente 40% na informalidade, ir às ruas para ganhar o pão é uma tarefa diária. Durante uma pandemia, essa parcela é uma das primeiras a correr risco de morte. Não trabalha, não ganha. Como pagar as contas? Pessoas pobres estão mais vulneráveis durante a pandemia.

O patriarcado é definido pela existência de apenas homens ou maioria de homens nos espaços de tomada de decisão, concomitante com um contexto de violência constante praticada pelos homens contra as mulheres, em todos os espaços. O contexto patriarcal trabalhista mundial, reforçado pelo capitalismo, remunera menos as mulheres, que também trabalham mais: estão sobrecarregadas com trabalhos domésticos e trabalho de cuidados, pois, os homens escolhem não trabalhar nessas áreas domésticas. Homens escolhem sobrecarregar mulheres. Elas trabalham em três áreas: trabalho principal, trabalho doméstico, trabalho de cuidados, é a tripla jornada. No Brasil, mulheres são maioria na informalidade, o que significa que estão em situação econômica mais instável. Além do fator trabalho, há o fator quarentena. Há dados de vários países, incluindo o Brasil, de que estão aumentando os casos de violência praticada por homens contra mulheres dentro dos espaços de isolamento. A quarentena existe para que pessoas se protejam do perigo externo: o vírus. No patriarcado, porém, o inimigo está em todos os lugares. A casa não é um lugar seguro para as mulheres, pois, os homens se sentem no direito de impor sua vontade sobre elas, de violentar fisicamente, sexualmente, psicologicamente. Se aproveitam do confinamento para desrespeitar. Homens tornam mulheres mais vulneráveis durante a pandemia.

O racismo é o sistema onde uma etnia se impõe sobre outra ou outras. No Brasil, pessoas brancas vem violentando pessoas negras e indígenas nos últimos cinco séculos. As populações negra e indígena foram socialmente vulnerabilizadas e, junto ao capitalismo, são atualmente as populações mais economicamente frágeis. São essas pessoas que estão nas profissões piores pagas, nas moradias mais precárias, com menos condição de arcar com melhores condições de saúde. São pessoas negras e indígenas que são maioria dentre a população de rua. Essas pessoas estão mais expostas e fragilizadas durante a pandemia.

No regime da heterosexualidade, pessoas LGBT estão mais vulneráveis no mercado de trabalho, devido ao preconceito. Também estão expostos à violência física nas ruas e dentro de casa. Violência sexual e psicológica também ocorrem, como crimes de ódio. Durante a quarentena, essas pessoas estão isoladas com agressores e agressoras. Para onde fugir? Pessoas LGBT estão mais fragilizadas durante a pandemia.

O chavão “homem, branco, rico e heterosexual” não é suficiente para caracterizar o grupo dominante em um contexto de violência. Nas famílias ricas, pobres, compostas por pessoas brancas, negras ou indígenas, mulheres e LGBT’s estão sendo violentados e sua mão de obra, explorada. No racismo, mulheres brancas estçao violentando mulheres negras. Mulheres e pessoas LGBT’s ricas estão em melhor situação do que mulheres, homens e pessoas LGBT’s pobres. Os sistemas de violência reforçam uns aos outros. É necessário que reconheçamos as violências existentes no nosso círculo mais íntimo: a família, as amizades, o bairro, o local de trabalho. A pandemia aproxima agressores de vítimas. Mas, muitos preferem não comentar ou refletir sobre esse absurdo.

Uma pandemia aprofunda as violências já existentes nas sociedades atuais. A pergunta até: por que e até quando nossas sociedades serão estruturadas na violência? Sociedades justas, de abundância e paz para todas e todos é possível. Por que não estamos vivendo essa realidade? Por que não estamos vivendo em uma sociedade de cooperação, ajuda-mútua e igualitário acesso à recursos? Uma pandemia aprofunda o cenário da violência e escancara onde chegamos. Temos que virar o rumo dos acontecimentos. E tem que ser agora.

Daniela Alvares Beskow
27 de março de 2020
Uma coluna por sexta
Coluna 8