Literatura feminina, literatura produzida por mulheres ou simplesmente literatura? Antes de falar sobre o termo “literatura feminina”, é importante refletir sobre o conceito de “feminilidade”- pensado a partir das referências ocidentais e como elas vem se difundindo pelo mundo – e como este origina várias práticas e regras associadas ao comportamento das mulheres
1- O conceito de feminilidade existe a partir de um binário, o feminino e masculino, onde há uma relação de hierarquia. Nela, o masculino predomina e domina, violenta o feminino.
2- A feminilidade é uma construção social, porém, ela é associada de forma necessária à mulher, ou seja, ela é naturalizada, tida como essência. O masculino também é tido como parte inerente do homem. Dessa forma, não apenas os comportamentos de gênero, mas, também, as hierarquias entre eles e logo, entre homens e mulheres, são justificadas através do argumento que são naturais e logo, não são passíveis de transformação, cabendo às pessoas aceitá-las.
3- Enquanto construção social, as práticas relacionadas à feminilidade existem e vem se transformando nos últimos séculos nas sociedades ocidentais e suas ramificações territoriais através da difusão desses valores, seja atualmente via mídias globais (cinema, marcas internacionais, etc), seja nos séculos anteriores via os processos de invasão de territórios durante o período chamado de “colonizações” e “navegações”, principalmente nos continentes da Américas e Africano.
3- Algumas características associadas ao conceito e práticas da feminilidade: delicadeza, contenção, sutileza, objetificação sexual, acolhimento, hesitação, emoção, falta de pensamento lógico-analítico, fragilidade, nudez,entre outros. São vários elementos que de forma geral, remetem à passividade e associam corpo com manifestação de erotismo e falta de capacidade para pensar, elaborar sobre a realidade, solucionar problemas e propor soluções para o coletivo.
Nesse sentido e partir de uma perspectiva feminista crítica e com bases materialistas, que critica os postulados acima, utilizar o termo “feminino” ou “feminilidade” para se falar da realidade das mulheres seria reforçar a realidade de opressão e violência existente contra as mulheres atualmente.
Nesse sentido, coloca-se o termo “literatura de mulheres”, ou “literatura produzida por mulheres”. Por que é importante demarcar o sujeito de fala, no caso, a “mulher que produz literatura”? Pois, no patriarcado, as mulheres não são consideradas sujeitos do discurso, suas falas não são consideradas relevantes e dignas de reconhecimento, ao passo que com os homens é o oposto. Essa diferenciação em relação à validação dos discursos gera um contexto onde homens produzem teoria, literatura, ciência, religião, sendo essas produções de conhecimento as aceitas e difundidas ao longo da história. Mulheres vem sendo historicamente impedidas ou desestimuladas a produzir conhecimento e quando o fazem, além dos vários obstáculos e retaliações existentes, não há a devida vazão desta produção para o coletivo, pois as estruturas de difusão ou destroem esse conhecimento ou simplesmente não o difundem.
Ao mesmo tempo, muitas mulheres que escrevem consideram desnecessário ressaltar publicamente o sujeito que fala, no caso a mulher escritora, pois, se colocam como uma mulher que produz literatura, e não literatura de mulheres – até porque o termo “literatura de mulheres” pode implicar que existam temáticas específicas para as mulheres lerem, o que geralmente é associado com romances “água com açúcar”, porém, cabe ressaltar que o argumento defendido aqui, não fala de temáticas, mas sim, de perspectivas. Ademais, é necessário entender que o termo “literatura”, assim como “ciência”, “política”, não são termos neutros, e sim, que são constituídos a partir da produção, majoritariamente, de homens. É a velha questão, o patriarcado coloca o homem como a referência e a mulher como o outro, o específico. De acordo com essa referência, sendo a mulher o específico, não haveria como produzir conhecimento para o “todo”, que é considerado o “neutro”. Porém, o neutro nada mais é do que o específico masculino. Nesse sentido, ao se falar de “literatura de mulheres”, ou “produzida por mulheres” corre-se o risco de se estar defendendo a mulher como específico.
Por outro lado, é possível propor o termo “literatura produzida por mulheres”, não como o “específico”, nem mesmo, como um ramo da literatura, mas, como uma perspectiva. É a perspectiva de quem não tem, historicamente, o espaço da fala. O homem, branco, heterossexual, já tem espaço de fala reconhecido, ela não precisa ressaltar seu contexto. Esse privilégio existe, pois, seu contexto já é reconhecido socialmente como referência. A partir desse contexto ele tem o privilégio inclusive de não conhecer o que as mulheres produzem, pois, esse dado não afeta sua vida, ao passo que as mulheres tem que saber, decorar e falar sobre os feitos , as teorias e os argumentos dos homens, pois esses feitos constituem a história oficial. Ressaltar o sujeito que fala torna-se então uma ação política, de transformação da realidade e de evidência do contexto de produção de conhecimento. Nenhum conhecimento é neutro. A partir do momento que o contexto de produção de conhecimento é evidenciado, entende-se melhor, inclusive, os termos e conceitos propostos por esta ou aquela autora/autor.
Nesse sentido, é de máxima importância o incentivo para que as mulheres produzam literatura, e também ciência, teoria, conhecimento jurídico, teologias, epistemologias, e assim por diante, e que, ao produzir conhecimento, se coloquem enquanto mulheres. Essa colocação gera visibilidade para outras mulheres, fomentando consciência de gênero, ou a consciência da mulher enquanto grupo, enquanto classe – inclusive gerando consciência das diferenças entre mulheres, que falam a partir de classes e raças/etnias diferentes, e sobre os privilégios existentes nos grupos dominantes onde mulheres também fazem parte – servindo também como um incentivo à outras mulheres escreverem. Nesse sentido se faz importante também que todos os sujeitos historicamente violentados e alijados dos espaços de reconhecimento e tomada de decisão, se coloquem, evidenciando esses contextos. Mulheres negras, mulheres lésbicas, homens negros, e assim por diante, produzem conhecimento que não é “específico”, mas, produzem perspectivas a partir desses contextos, que diferem das perspectivas dominantes.
Acredito que estamos em um momento de transição, construindo práticas que lutam pelo fim da invisibilidade da mulher no campo de produção de discurso. Assim, espero que em um tempo não muito distante, não existam mais hierarquias entre homens e mulheres, brancos e negros, e todas as outras, e os campos de produção de conhecimento, como a literatura, a ciência, a política e toda produção de conhecimento socialmente reconhecida sejam campos de fato ocupados ambos por mulheres e homens.
Algumas das autoras que contribuiram para essa reflexão: Heleieth Safioti, Ivone Gerbara, Alessandra Tanesini, Kimberle Crenshaw, Maria Lygia Quartim de Moraes, Gerda Lerner, Barbara Mehrhof, Sheila Jefreys, entre outras. (Daniela Alvares Beskow)
Daniela Alvares Beskow, escritora e bailarina, Bacharel em Ciências Políticas, Bacharel em Comunicação das Artes do Corpo e Mestranda em Artes Cênicas pelo Instituto de Artes da Unesp, em São Paulo, SP.
Maio de 2017
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