Atualmente está em debate na cidade de São Paulo o edital do Fomento à Dança. Esse edital tem como objetivo o financiamento do trabalho continuado de grupos e artistas da cidade e ocorre através de processo seletivo. É um dos poucos editais/programas públicos na área de dança na cidade e, logo, bastante concorrido. Até recentemente o período de duração do projeto era de dois anos, o que foi alterado pela atual prefeitura, para um ano. Um dos argumentos é que dessa forma, mais artistas poderão ser contemplados.
Precisamos sair da dicotomia: muitos grupos recebem pouco X poucos grupos recebem bem.
É preciso que muitos recebam bem. Artistas precisam, assim como qualquer outro trabalhador, receber de forma digna por seus trabalhos. Precisamos não apenas de um edital de fomento, que promove renda temporária. Artistas, como em qualquer outra profissão, precisam de ESTRUTURA de trabalho.
Como se sabe, a grande maioria dos artistas no Brasil trabalha de forma precarizada: empregos temporários, sem carteira assinada, muitos enfrentam meses sem arrecadar o mínimo para depositar no INSS como autônomo. Ficamos nas mãos de seleções de festivais, de empresas que buscam projetos para divulgar suas próprias marcas, de editais públicos (os poucos) concorridíssimos. Em algumas cidades e estados do país existem alguns programas de incentivo e fomento às artes cênicas: centros culturais públicos com editais de trabalho com duração de um semestre, um ano; editais de ocupação do espaço, porém, sem remuneração. Há também espaços públicos, alguns com nenhuma estrutura, outros com alguma estrutura, onde se pode trabalhar, ensaiar, se apresentar, mas não ser pago por isso.
A vida dos artistas no Brasil é de constante instabilidade. O que promove estabilidade? Constância de renda e existência de direitos trabalhistas. Editais para trabalhos temporários não promovem nenhum dos dois. Editais para trabalhos temporários deveriam existir como COMPLEMENTO a uma estrutura sólida de empregos na área de artes cênicas.
O que promove uma estrutura sólida de empregos? Espaços físicos e políticas a longo prazo.
1) Espaços físicos que empreguem artistas para desenvolvimento de pesquisa e apresentações;
2) E políticas a longo prazo, que promovam pesquisa continuada não necessariamente atrelada à um espaço físico, porém, com pagamentos continuados, fixos.
Tanto a estrutura física como os projetos a longo prazo devem promover salários e direitos trabalhistas como qualquer outro emprego. Onde ocorre isso atualmente no Brasil na área de dança e artes cênicas? Nas pouquíssimas companhias fomentadas pelo poder público.
É necessária uma situação de estabilidade para todos os artistas. Precisamos de espaços públicos, centros culturais que empreguem artistas e também de editais, fomentos e projetos continuados que paguem e empreguem artistas a longo prazo. A grande quantidade de profissionais na área e quantidade insuficiente de editais gera um panorama onde o artista é aprovado em determinada seleção e, passado o período de trabalho, muitas vezes passam-se anos sem aprovação em novas seleções. Essa situação gera a necessidade do artista em trabalhar em outras áreas profissionais durante os intervalos entre uma aprovação e outra, para que complemente a renda gerada pela produção independente de seus trabalhos, esta, ininterrupta e na maioria das vezes, ocorrendo em estrutura precária de trabalho. Muitas vezes o complemento da renda se dá através da atuação na área de educação, ensinando outras pessoas seu ofício. Porém, produção artística e educação não estão necessariamente conectadas, nem sempre a integração entre pesquisa e ensino é foco do trabalho individual do artista.
Esse panorama demonstra a ausência de uma política consistente para trabalho artístico no Brasil.
Artistas precisam de estrutura de trabalho. Será que em outras áreas profissionais o panorama descrito seria também viável? É possível imaginar uma médica sem hospital para trabalhar? Um professor sem escola? Editais temporários com duração de 6 meses, onde, por exemplo, o médico atenderia pessoas doentes ou o professor daria aulas em espaços privados de forma temporária, por um ou dois anos? E depois seguiria participando de outras seleções, promovendo trabalhos igualmente temporários? Essa situação não existe, porque isso não faz o mínimo sentido. Porém, essa situação é observada no terreno das artes. Para o trabalho com artes vale qualquer coisa. A desvalorização do trabalho artístico é imensa.
Para que existam condições dignas de trabalho para todos os artistas é preciso que haja estrutura de trabalho, espaços físicos, direitos trabalhistas e mais oferta de editais a longo do ano, que atenda a demanda qualificada de trabalhadores da arte e da cultura, impedindo que esses profissionais abandonem sua profissão ou mesmo que saiam do país em busca de melhores condições de trabalho.
Concluindo, é preciso mais respeito ao trabalho em artes cênicas.
Daniela Alvares Beskow
09 de junho de 2017