Há alguns anos ocorre um debate no meio feminista que é a ação de mulheres deixarem os seios à mostra em espaços públicos, seja em protestos ou momentos lúdicos e de lazer/comemoração, como o carnaval. Venho com a coluna de hoje apresentar alguns pontos desse debate, para reflexão.
Primeiro, vivemos em um regime patriarcal no Brasil e uma das leis atuais deste regime é que homens são autorizados a andarem com os peitos à mostra e mulheres, não. Essa é uma questão muito relevante para o debate, pois, esta lei, que criminaliza a obscenidade – encontrada no Artigo 233 na Constituição Penal de forma vaga, pois, não define o que seria obsceno, tampouco caracteriza o que seriam ações de obscenidade para homens e mulheres. O que ocorre porém, na prática jurídica, é uma reprodução da diferença de interpretação, que ocorre no âmbito social, sobre mulheres que exibem o torso em público e homens que exibem o torso em público, condenando a primeira situação e autorizando a segunda – autoriza uma mesma ação para pessoas de um sexo e desautoriza para pessoas de outro sexo. Seria o mesmo que determinar por lei que homens podem correr nas praças e mulheres, não. Que homens podem ficar descalços em público e mulheres, não. Que homens podem beber água na frente de outras pessoas e mulheres, não. Ou seja, não existe motivo plausível no âmbito jurídico para definir o que as pessoas podem ou não fazer em espaços mistos, em função de seu sexo a não ser que tal ação seja uma ação de violência justamente por advir de tal ou tal sexo, como é o caso, por exemplo, de homens que expõe o pênis em público. Tal ação corrobora para a cultura do estupro, enquanto que, se uma mulher expuser sua vulva em público, não seria o caso de esta corroborar com a cultura do estupro, já que ela não é o sujeito político da violência patriarcal, cuja uma das grandes armas é o estupro e a ameaça de estupro através da nudez masculina.
No âmbito social, porém, existem muitas regras – que definem o que pessoas podem ou não fazer em espaços mistos de acordo com o seu sexo. São regras relativas à comportamento, vestimenta, corporalidade, etc, e que definem padrões diferentes para homens e mulheres. Essas são regras, costumes e não leis. Não deixam de ser absurdos, pois, são resultados de regimes de poder, mas, seria ainda mais absurdo se estivessem formalizados em leis e passíveis de punição por parte do Estado. Mulheres não são punidas pela lei se rasparem o cabelo – serão punidas socialmente nos mais diversos ambientes cotidianos e é dever coletivo rechaçar tais punições e apoiar mulheres que negam a feminilidade opressiva – mas, se estiverem com os peitos à mostra, sim, podem ser punidas com o encarceramento. Aqui observa-se um reforço do âmbito jurídico dos costumes opressores realizados no âmbito social.
O âmbito social diz que a mulher que expõe os seios em público está cometendo um ato obsceno, ou seja, afirma que o corpo da mulher é obsceno. Seria obsceno aquilo que atenta ao pudor, ou seja, à decência, ao aceitável, à vergonha/timidez. O conceito de obsceno e pudor, para começar, é bastante vago, ou seja, nada objetivo e pior, resultado de conceitos patriarcais sobre o corpo. Se diz que a mulher deve ter vergonha de expor os seios em público, pois, ao expô-los estaria cometendo um atentado sobre sua própria vergonha ou sobre a vergonha de outras pessoas, estas, frente a obrigação de conviver com esses seios à mostra. Já o homem, não. Não deve ter vergonha da região peitoral, logo, não está cometendo um atentado contra a sociedade ao expor essa região. É também patriarcal a inversão de significados sobre a nudez da mulher em público resultar em constrangimento advindo de sua própria vergonha ou resultar de constrangimento advindo de assédio por parte dos homens. Ou seja, se diz que a mulher não expõe seus seios por ter vergonha de fazê-lo (e a lei reforça: a mulher que expõe seus seios em público está realizando ato obsceno, ou seja, atentando ao pudor, ou seja, à vergonha) quando na realidade o que ocorre é que a mulher não expõe os seios por medo de sofrer violência por parte dos homens.
Esta violência possível, por sua vez, é advinda de uma interpretação desrespeitosa sobre o corpo da mulher, a que diz que a mulher é fonte de desejo e que o desejo sobre o corpo da mulher não viria do homem que deseja, mas, da mulher ela mesma. Cristaliza a mulher como um ser constantemente erótico, o erótico seria sua essência. Esta interpretação corrobora para o pensamento que atribui a responsabilidade do estupro à mulher, já que, “se ela estava com tal ou tal roupa, ela é culpada por ter deixado à vista o seu corpo, a fonte de eroticidade que teria levado o homem a cometer a violência”.
Ou seja, a lei afirma que a mulher não deve expor seus seios em público porque deve manter preservada sua vergonha e a vergonha dos outros. Mas, o que ocorre é que ela não expõe seus seios em público para se proteger da violência que homens cometem contra mulheres, pois, os homens interpretam essa nudez como disponibilidade absoluta ao sexo. “Absoluta”, pois, os homens já enxergam as mulheres vestidas como estando disponíveis sexualmente constantemente. Porém, nuas, entendem que a disponibilidade é completa e imediata. Não entendem que, assim como eles desnudam o torso em dias de calor, mulheres também podem fazê-lo sem que esta ação esteja associada ao erótico ou à sexualidade.
Analisemos então o significado de erótico. A nudez por si só não é necessariamente erótica ou sexual. O erótico e o sexual existem a partir de >situações< eróticas e sexuais, onde são atribuídos significados a partir de uma relação consensual e íntima entre duas ou mais pessoas adultas. Erótico é relação e não imagem. Inclusive pode ocorrer uma situação erótica entre pessoas vestidas. O erótico é uma intenção entre duas ou mais pessoas que constróem juntas e consensualmente essa relação. A nudez não erótica por si só. Tomamos banho, ficamos nus em cirurgias, nadamos praticamente nus nas aulas de natação e nenhuma dessas situações é erótica, são situações cotidianas onde é necessário que se utilize pouca ou nenhuma roupa. A situação de calor em espaços públicos deveria ser a mesma situação. A lei que define que homens podem tirar a camisa em espaços públicos e mulheres não, é absurda, não faz sentido nenhum.
A partir das ideias de que: 1- considerar o corpo da mulher por si só como um elemento erótico é uma interpretação patriarcal e logo, violenta; 2- homens podem andar na rua com os peitos à mostra e mulheres não, o que significa uma injustiça no âmbito jurídico; 3- atribuir a ação das mulheres de cobrir os seios como sendo advindo de vergonha por parte das mulheres e não ao seu real motivo, que é a proteção da violência praticada pelos homens; 4- a fonte de desejo sobre a mulher é a própria mulher e não o homem que deseja a mulher a partir de uma interpretação equivocada sobre a existência da mulher na sociedade; considera-se um ato de protesto mulheres que expõe os seios em público. É um protesto que clama por direitos iguais entre homens e mulheres, que afirma que temos direitos aos nossos próprios corpos, que não somos objetos sexuais e queremos andar na rua em paz, sem sermos violentadas, cobrindo ou não nossos torsos. Esses são os prós.
Agora, os contras. Mulheres tem protestado de seios à mostra em vários momentos na história das últimas décadas, por conta dos argumentos resumidos acima. Não discordo que seja um protesto, quando realizado de forma desvinculada da estética feminilizada e violenta, e apoio este protesto, porém, é preciso analisar mais elementos para se refletir sobre essa ação de forma complexa.
Uma imagem existe também em função do receptor, do espectador, ou seja, da forma que uma pessoa vai interpretar essa imagem. A interpretação que duas pessoas tem de uma mesma pintura provavelmente vai ser com frequência, diferente. Enquanto uma pessoa foca sua atenção nas cores e na sensação que estas trazem à tona, a outra pessoa vai observar os traços do pincel, se são finos ou grossos, nítidos ou embaçados. Esses dois focos de atenção vão produzir interpretações diferentes sobre a obra.
No caso de pessoas que observam pessoas ocorre o mesmo. Enquanto uma pessoa observa um homem a partir de sua vestimenta, outra pessoa vai observar mais suas posturas corporais, a forma como ele anda e fala, por exemplo. E partir dessa seleção de informações, vão interpretar esse homem de forma diversa e se relacionar com esse homem, de forma diversa.
Como vivemos em uma sociedade machista e patriarcal, onde homens impõe seu ponto de vista sobre a realidade e definem regras coletivas a partir desse ponto de vista parcial e violento, resulta que as interpretações aceitas sobre o corpo das mulheres vão ser aquelas produzidas e difundidas pelos os homens. Já foi apontado acima como isso se reflete na lei, inclusive. Logo, quando homens se deparam com mulheres que estão no espaço público com os seios à mostra, eles imediatamente se relacionam com essas mulheres de forma desrespeitosa, como o fazem na vida em geral. Ou seja, enquanto que mulheres estão interpretando a ação de expor os seios em público, como uma ação de protesto e de liberdade, homens estão interpretando esta mesma ação como um reforço da cultura patriarcal, da cultura do estupro. Eles observam essas mulheres que se colocam como livres, não como livres, não como pessoas que devem ser respeitadas, mas, novamente como pessoas violáveis. Homens interpretam essa ação de protesto como um reforço de seu próprio desejo violador, um reforço da cultura dos filmes pornô, das revistas de pornografia nas bancas de jornal, da associação entre mulheres e eroticidade que ocorre na cultura patriarcal, em relação tanto à mulheres vestidas como mulheres nuas. Estando vestidas ou nuas, mulheres sempre são consideradas fonte de eroticidade constante para os homens e disponíveis para a relação sexual. Ainda que tanto mulheres vestidas quanto mulheres nuas sejam violentadas das mais diversas formas na cultura patriarcal brasileira, o discurso social opressor produzido pelos homens afirma que quanto menos roupa a mulher estiver vestindo, mais ela está autorizando a invasão sexual do homem. Esse é o discurso que reforça a cultura do estupro – “foi estuprada pois estava com pouca roupa”, ao invés de “foi estuprada porque o estuprador estuprou” (o que é óbvio) – quando, sabe-se que homens estupram mulheres independente da roupa que elas estiverem vestindo. Porém, a associação patriarcal entre mulheres que vestem pouca roupa e disponibilidade para o sexo, que ocorre no discurso social, reforça a interpretação machista sobre as mulheres com os seios à mostra em protestos ou em qualquer outra situação. Logo, conclue-se que:
Apesar de a intenção das mulheres que expõe os seios em público ser de protesto e liberdade, os homens vão continuar interpretando essa situação a partir de um ponto de vista erótico e sexualizado, vão continuar observando essas mulheres como disponíveis ao sexo, já que semi nuas e já que mulheres. Esses homens vão provavelmente tirar fotos e espalhar essas fotos em sites de violência e pornografia. Esses homens vão olhar os seios nus das mulheres de forma desrespeitosa e vão interpretar as mulheres como seres pornográficos à disposição. Nesse sentido, os homens vão continuar reforçando a cultura do estupro, a cultura patriarcal. Aproveito para reforçar que a responsabilidade por esta interpretação é dos homens, ou seja, mulheres com seios à mostra não estão reforçando a cultura patriarcal, quem está reforçando esta cultura são os homens, ao interpretar o corpo nu da mulher de forma erotizada e disponível ao sexo. Ainda, acho que vale a pena um debate sobre a estética feminilizada com que mulheres muitas vezes associam à esta nudez – esta, natural – em protestos ou momentos de fazer. São adereços da feminilidade, e logo, da violência contra as mulheres, elementos como o salto alto, espartilho, sutiãs push-up, maquiagem feminilizada, roupas apertadas, entre outros. Todos estes impedem a mobilidade corporal das mulheres e cristalizam a associação entre mulheres e eroticidade patriarcal. Muitas vezes a nudez em público vem com esses elementos e é importante que debatamos suas consequências materiais para os corpos das mulheres, como lesões articulares, dificuldade na respiração (o que gera outros problemas de saúde), alergias e outros.
Conclusão: é importante que nós, mulheres, possamos ter o direito – no âmbito social e no âmbito jurídico – de estarmos em espaços públicos com a região do torso à mostra, caso optemos por isso, assim como os homens tem essa opção. E é importante também que um conjunto amplo de ações seja realizado na sociedade a fim de eliminar as interpretações machistas sobre os corpos das mulheres, interpretações essas que geram violências sexuais e físicas diariamente no país. Dessa forma, homens conseguirão conviver no mesmo espaço com mulheres que estejam com ou sem camisa, sem que as interpretem como seres disponíveis ao sexo, sem que as interpretem como seres eróticos por essência. Mulheres são seres políticos e assim seguirão sendo. Mulheres serão seres eróticos quando escolherem em situações consensuais que escolherem. Este processo de transformação cabe à todos nós, promovendo e ligando ações que prezem pela liberdade das mulheres e pelo fim imediato da violência praticada por homens contra mulheres.
Resumo do argumento:
1- Os seios das mulheres não são eróticos por estarem à mostra.
2- Eroticidade é uma >relação< (e não uma imagem) consensual entre duas ou mais pessoas adultas.
3- Homens objetificam os seios à mostra das mulheres, assim como quando estão cobertos.
4- Mulheres com seios à mostra é um protesto pela liberdade e direitos iguais. Se homens podem andar sem camisa em locais públicos, por que mulheres não podem?
5- Apesar desta ação de liberdade e protesto, homens não interpretam essa ação como um protesto e sim como uma ação erótica.
6- Solução: fomentar uma rede de ações que: permitam que as mulheres sejam livres e possam andar com os seios à mostra, se assim quiserem; eliminem as interpretações machistas dos homens sobre os corpos das mulheres; coloquem um fim à violência que homens cometem contra mulheres.
Daniela Alvares Beskow
21 de fevereiro de 2020
Uma Coluna por Sexta
Coluna 3