Bela, recatada e do lar

Na segunda feira 18 de abril e revista Veja publicou uma reportagem sobre a esposa do vice-presidente Michel temer, Marcela Temer. Como toda velha grande mídia nesse país, a revista está alinhadíssima com a agenda do golpe. Um dia após o golpe parlamentar do dia 17 na câmara dos deputados a revista lança reportagem opinando a respeito de quem supõe ser a próxima primeira dama do Brasil a partir de maio, apostando no afastamento da presidente Dilma, mesmo que este ainda não esteja concluído. Terá já a revista a resposta de seus comparsas políticos que adiantam o resultado da votação para sua amiga grande mídia? Amiga, mãe, esposa, as coisas parecem ser feitas em família na política brasileira e é a essa família, maquiada, mentirosa, hipócrita, que a revista dedica sua capa dessa semana. A família ideal de Veja.

A família ideal de Veja tem o homem tomando decisões e a mulher calada ao seu lado. Essa mulher está dentro do ideal violento de beleza que escraviza e viola milhões de mulheres ao longo da história no Brasil nos últimos séculos. Para começar a beleza é branca e rica. Ela é nobre, inacessível, ela pertence à poucas. Obviamente ela está dentro dos padrões, ela também é magra e jovem. Ela está associada a um homem mais velho, que a controla. Este homem tem projeção política e esta mulher tem projeção estética. É tudo que os políticos atuais querem: uma mulher enfeite ao lado de um homem poderoso.

Bela

O mundo patriarcal incentiva as pessoas a observarem uma mulher a partir de parâmetros estéticos. Descrições físicas são as primeiras a aparecer em livros, jornais, revistas, quando o tema em questão é uma mulher. Em contraste, caracterizações sobre o homem incluem adjetivos relacionados à força e à inteligência. Esse é o primeiro ponto.

Recatada

O termo “recatada” se refere à não manifestação de sentimentos e opiniões. É a pessoa quieta, tímida, que não se posiciona em relação à realidade. Quando utilizado para descrever uma mulher – assim como muitos termos brasileiros – é comumente associado à sexualidade. Recatada seria uma mulher envergonhada de sua própria sexualidade, que não toma iniciativa nesse âmbito. Características estas muitos associadas à infância e juventude, à não tomada de decisões, à não manifestação plena de suas opiniões. Em outras palavras, para a mente patriarcal, uma mulher recatada seria uma mulher “estuprável”. Pesado ou vir isso? Apenas pense nos assédios e violências sexuais vivenciados por mulheres todos os dias nesses país, onde as vítimas de estupro são majoritariamente meninas. Isso sim é pesado.

Do lar

“Do lar” é uma expressão antiga, não muito utilizada nos dias de hoje. Com esse termo a revista conclui o seu pensamento e volta algumas décadas atrás em relação ao que seria o padrão esperado da mulher pela maioria das pessoas: a mulher que dedica parte ou todo o seu dia as atividades domésticas e ao cuidado do marido de dos filhos – essa seria a “família”, tão comentada aliás, no último domingo pelos políticos golpistas. É o oposto da mulher da vida pública, da política, daquela que toma decisões a nível coletivo, controla, administra e lidera um grande números de pessoas, incluindo homens e mulheres.

No patriarcado e mais profundamente no capitalismo a beleza está associada à juventude e no caso da mulher, à jovem. É um desejo social pedófilo. Há um incentivo ao desejo e a objetificação sexual em relação à mulheres, adolescentes e meninas, a mesmo tempo em que não há uma reflexão crítica sobre isso. O corpo jovem que não tem pelos, não tem rugas, não tem cabelos brancos. O corpo jovem que é imaturo, que não questiona, que obedece muitas vezes por não entender o que está se passando. O desejo social que o patriarcado cria é asqueroso. É esse mesmo belo – que a princípio seria característica de cunho positivo – que estupra centenas de milhares de meninas no Brasil todos os anos. O estupro no Brasil tem sexo, idade e raça. A esmagadora maioria das vítimas são meninas negras abaixo de 13 anos. Quem “paga o pato” da difusão opressora dos ideais de beleza da grande mídia são as mulheres, adolescentes e meninas brasileiras. É a partir dessa lógica doentia que funciona a difusão dos padrões de beleza em uma sociedade patriarcal. Eles não servem às mulheres, mas, sim, aos homens que se utilizam de tais padrões para atender às suas ânsias por violência. Marcela Temer é uma vítima desses padrões, assim como todas as mulheres brasileiras. E reconhecer essa e outras situações enquanto vítima não é tirar a autonomia, agência ou poder de decisão das mulheres sobre a realidade. É reconhecer que em dado momento e contexto há opressores e vítimas, há agressores e agredidas, há aqueles que violam e aquelas que são violentadas. A vítima nunca deixa de ser sujeito pois a capacidade humana de ação é inata. Reconhecer-se em um momento de fragilidade não significa que se é frágil por essência. Isso não existe. Significa que em dado momento a vítima não tinha condições individuais e sociais de agir e reagir. Voltando à questão principal.

Veja projeta seus ideais conservadores, direitistas, onde a mulher está bem longe do lugar da política da tomada de decisão, do posicionamento firme, do comando. Na política é apenas enfeite. Ela acompanha em silêncio o homem que toma as decisões.

Dilma Roussef, a presidente do Brasil, é uma mulher forte, que se posiciona, fala sua opinião. Ela ocupa um dos cargos mais importantes de tomada de decisão de um país, que é o executivo. Estar nesse cargo significa dar ordens não apenas à um grande número de indivíduos homens e mulheres, mas, também à grupos, instituições, órgãos. Dilma está fora do padrão misógino de beleza das mulheres. Dilma é uma mulher madura e não é mais uma jovem, ela tem grande experiência e conhecimento sobre muitos assuntos. Dilma interfere na vida pública de forma decisiva, já que ela é a presidente. Dilma não está em casa cuidando dos filhos e do marido. Aliás, sua casa é resultado de sua atuação enquanto mulher política, profissional, não é uma casa privada como as outras. Dilma é tudo que o patriarcado não quer.

Concluindo, a grande mídia, além de ser aliada aos interesses da direita nesse país e atuar diariamente contra os setores de esquerda, contra os movimentos sociais e indivíduos que questionam as estruturas de poder, se utiliza desse momento histórico – onde temos a primeira mulher presidente do Brasil – para desqualificar a presidente não apenas enquanto gestora pública, mas, como mulher. Aliás não é apenas a grande mídia, mas indivíduos, instituições, movimentos e cidadãos que opinam na internet e se manifestam publicamente. Há em curso atualmente no país uma grande força misógina e machista que ataca a presidente pelo fato de ser mulher. São comentários em redes sociais, programas de televisão, rádio, reportagens e colunas em jornais e revistas. A matéria da Veja dessa semana sobre Marcela Temer vem concluir esse processo que já dura anos de ataques à presidente do Brasil, ao propor para a sociedade, – na semana do golpe, semana da vergonha – o que considera ser o padrão ideal de mulher para estar próxima à política. Próxima, como enfeite e acompanhante, mas, não como sujeito. Essa imagem de mulher vendida pela revista essa seria oposta à mulher que tanto odeiam e que está agora no poder, que é Dilma Roussef. Sinto informar que as mulheres são e sempre serão sujeitos de sua própria história, queira a direita ou não, queira a grande mídia ou não e elas irão subir muitas e muitas vezes ao cargo máximo de comando de um país. Mulheres não são enfeites, são sujeitos.

Gostaria de retificar aqui que a análise acima não é referente à pessoa de Marcela Temer, estou falando da construção imagética que a grande mídia fez dela. A grande mídia constrói e destrói imagens e personalidades de acordo com sua vontade e seus interesses no momento. Ela manipula vidas, acusa pessoas sem provas, gera heróis e salvadores da pátria. Ela gera musas e divas. E depois a destrói sem qualquer remorso na primeira oportunidade de ganho político ou econômico, na medida em que manipula informações e relaciona política e ganhos financeiros das piores formas possíveis.

Concluo com a afirmação: mulheres fortes, jovens e velhas, maduras ou no início de suas reflexões, mulheres que opinam, que refletem, que discursam em público, que compartilham dúvidas, que propõe, que saem às ruas, que marcham, que decidem, que questionam o estabelecido. São essas as mulheres brasileiras, inclusive fruto da semente que Dilma deixou em todas nós mostrando à todas que sim, mulheres podem ser presidentes e comandar uma nação! Desrespeitos e violências não serão tolerados!

Viva o feminismo e os movimentos de mulheres que transformam mulheres pelo mundo todo desenvolvendo em cada um de nós a percepção de que somos fortes e capazes de decidir, viva!

Daniela Alvares Beskow

Abril/ 2016

Como citar essa coluna:

Beskow, Daniela Alvares. Bela, recatada e do lar. Palavra e Meia, Abr. 2016. Colunas. Disponível em: <http://www.palavraemeia.com/colunas/bela-recatada-e-do-lar/> Acesso em: [inserir data].