Por uma arqueologia epistemológica

É hora de descobrir novos clássicos: por uma arqueologia epistemológica

Se diz que uma obra é clássica quando ela se destaca no debate coletivo, por ter fundado algum pensamento ou ter se tornado marco de algum debate, pesquisa , investigação. Ambos casos são originários de processos onde as relações de poder estão envolvidas. Existe um diversidade grande de pensamentos em curso, muitos, fundados há séculos ou milênios e que, por não terem sua fundação destacada coletivamente ao longo da história, se perderam com o tempo. O mesmo ocorre com obras que marcam um tempo. Para que exista a possibilidade de uma obra ser marcante, não basta apenas que ela exista, é preciso primeiro que ela seja validada socialmente, reconhecida, apoiada, difundida, comentada, citada. Não é o que ocorre com a maioria das obras ou das idéias. Na dinâmica social gerida por regimes de dominação, teorias e idéias são difundidas de acordo com os interesses daqueles que dominam. Não faltam exemplos de idéias que foram inclusive proibidas de circularem ao longo da história, por irem de encontro à violência formalizada, institucionalizada.

Surge então a reflexão: quantas obras silenciadas são necessárias para que uma obra seja reconhecida? É importante fazer esse cálculo.

Anos após ano vemos intelectuais, pesquisadoras/es, estudantes, comentaristas, repetirem os mesmos nomes nas suas referências de pesquisa e estes são em sua maioria, nomes de pensadores homens e brancos.

Já tem algumas décadas que as intelectuais feministas ressaltam a importância de uma arqueologia epistemológica em busca das obras e/ou pensamentos produzidos por mulheres ao longo da história. O patriarcado não apenas não reconhece as epistemologias de mulheres no próprio tempo em que a produzem, como também as apaga da continuidade da história. Até hoje citamos os filósofos homens da Grécia Antiga. Nessa  época, mulheres não eram reconhecidas enquanto possíveis filósofas, pensadoras, investigadoras. Mas elas existiram. Quantas dessas filósofas estão para ser descobertas? Quantas pensadoras de tantos países e regiões estamos esquecendo, quanto mais o tempo passa e não as re- descobrimos? Seja através de escritos autorais ou então de citações feitas por outras pessoas, em documentos dispersos. Há interesse coletivo em realizar essa arqueologia? Por quanto tempo mais iremos repetir à exaustão os homens europeus e estadunidenses?

Atualmente vemos diversos movimentos de valorização da palavra de mulheres, de pessoas negras, pessoas indígenas, mulheres lésbicas. O cansaço da citação de homens brancos é tanto, que, muitos grupos optam por citar apenas mulheres, apenas pessoas negras, apenas mulheres lésbicas e excluir por completo as contribuições intelectuais de homens brancos. Porém, intelectuais que não compõe esses grupos, se dão ao luxo de ignorar completamente esse debate e seguem citando os mesmos homens…os mesmos “clássicos”. Que preguiça! Tanta diversidade de pensamento para termos que ficar ouvindo as mesmas teorias, os mesmo conceitos, sendo aplicados em todo e qualquer exemplo, homogeneizando as análises.

Quantas epistemologias a humanidade está perdendo enquanto segue o fortalecimento dos mesmos nomes, das mesmas idéias. Quanta diversidade intelectual estamos perdendo? Seguiremos com o epistemicídio?

É hora de fortalecer a investigação sobre quem são essas mulheres, essas pessoas negras, indígenas, quem são as mulheres lésbicas que fundaram pensamentos e práticas ao longo da história, que marcaram períodos, que difundiram suas idéias através da oralidade, da escrita, da representação cênica ou da contação de histórias.

É hora de descobrirmos novos, porém velhos, clássicos. Precisamos de uma arqueologia epistemológica.

Daniela Alvares Beskow

06 de junho de 2020