Reserva de vagas no edital “Ações em rede” da cidade de Campinas e reflexões sobre cotas

Reserva de vagas no edital “Ações em rede” da cidade de Campinas e reflexões sobre cotas[1]

Introdução

No dia 23 de outubro de 2020 foi publicado o edital “Chamada pública 02/2020 – Ações em Rede” da Secretaria Municipal de Campinas[2] destinado a selecionar profissionais e projetos das artes e cultura do município. O edital faz parte das ações da Lei de Emergência Cultural Aldir Blanc. O edital apresenta item sobre políticas afirmativas, através da política de reserva de vagas, conhecidas também como cotas. Apresento abaixo algumas reflexões sobre este assunto nas três primeiras partes do texto e na última e quarta parte, críticas a alguns pontos do edital e sugestões de melhora.

Cotas são necessárias

Pode-se definir pelo menos três, os grupos que sofrem violência no Brasil e que são majoritários, ou seja, que numericamente constituem maioria em relação a outros grupos: o grupo das pessoas negras; o grupo das mulheres; e o grupo das pessoas pobres. Dos grupos minoritários e que também sofrem violência enquanto grupo, podem ser citados: pessoas com deficiência (PCD); pessoas homossexuais (gays e lésbicas); pessoas indígenas, que antes da chegada dos europeus ao território constituíam um grupo majoritário e que vieram a se tornar um número minoritário devido ao extermínio dessa população ao longo dos últimos séculos; e pessoas trans.

De caráter indiscutível, a existência de cotas em seleções para cargos públicos, vagas na universidade e outras seleções são de extrema importância para reparar violências históricas cometidas contra grupos, sejam eles majoritários ou minoritários. Violências que na maioria dos casos se ampararam em leis ao longo da história, impedindo assim, de forma jurídica, direitos e a concretização de vidas dignas e para a totalidade da população. Para citar alguns exemplos: as leis portuguesas e brasileiras que permitiram a escravização (sequestro, trabalho forçado, assassinato, violências físicas e sexuais, tortura, cessão das liberdades individuais e coletivas) de pessoas negras e indígenas no Brasil[3]; a lei que impedia a presença de pessoas negras nas escolas públicas[4]; as leis que estabeleciam inúmeras punições para homens e mulheres homossexuais incluindo açoites e pena de morte[5]; as diferentes leis que impediam pessoas pobres, pessoas escravizadas, pessoas jovens, analfabetos e mulheres de votarem e serem votadas nas instâncias representativas da sociedade nos vários momentos da historia do Brasil[6]; a lei que impedia a mulher casada de trabalhar se não tivesse a autorização do marido[7]; e muitos outros exemplos. Essas leis afetaram não apenas as pessoas que viviam na época em que eram vigentes, mas, sucessivas gerações de pessoas até os dias atuais, através dos efeitos contextuais a longo prazo. São violências que ocorrem em rede, ou seja, através da relação com outros inúmeros elementos que reforçam e replicam essas violências, e por isso, são denominadas violências estruturais. A eliminação de violências estruturais demanda soluções igualmente estruturais. Reserva de vagas em seleções constitui apenas um dos passos em direção à transformação dessas estruturas.

Nos últimos anos as cotas vêm sendo implementadas em dois setores públicos no Brasil: seleções para vagas em universidades públicas e seleções para cargos de trabalho na área pública federal. Os sistemas de cotas funcionam a partir de regras diferentes nesses dois tipos de seleções. Inclusive entre as universidades, há diferenças entre as metodologias.

Na área das empresas privadas também tem se disseminado seleções que buscam priorizar grupos que vem sendo violentados historicamente. Observam-se seleções que oferecem vagas apenas para profissionais mulheres ou apenas para profissionais LGBT ou apenas para candidatas/os negras e negros a partir de critérios de seleção nem sempre explícitos.

Não há ainda leis que estabelecem cotas para mulheres, pessoas homossexuais ou pessoas LGBT em seleções públicas para vagas de emprego ou vagas para estudar nas universidades. É importante pontuar que em relação ao grupo das mulheres, existem desde 1995[8] as cotas para candidatas às eleições municipais e desde 1997[9], para eleições municipais, estaduais e federais, com implementação de cotas do fundo partidário e tempo de TV proporcionais legisladas no ano de 2015[10].

O edital “Ações em Rede” de 2020 da Secretaria Municipal de Campinas apresenta como um de seus componentes de seleção, a política de cotas. Estas estão estabelecidas para pessoas indígenas, pretas e pardas; mulheres; e pessoas trans. Neste sentido, observa-se um avanço na elaboração de políticas públicas do município, pois, inclui o grupo majoritário das mulheres na política de reserva de vagas, fato pouco observado no país em seleções públicas até o momento presente. Este ponto é positivo, mas, observa-se a inexistência de explicações sobre alguns pontos no edital e outros bastante confusos. Nesse sentido, desenvolvo abaixo alguns apontamentos sobre o tema da reserva de vagas, ou cotas, e perguntas e sugestões de melhoria ao texto do edital.

Cálculos e diferentes formas de cotas

Há diferentes formas de se fazer o cálculo sobre a porcentagem da reserva de vagas e sobre a forma de concorrência a essas vagas. É preciso aprofundar a reflexão sobre o tema, para que as seleções sejam cada vez mais justas e contribuam para reparar grupos que vem sofrendo violências históricas.

As cotas nas instituições federais de educação superior foram implementadas a partir da Lei 12.711[11] de 2012 e determina como filtro principal a reserva de vagas para alunas e alunos provenientes da rede pública de ensino. Dentro da cota de alunos das escolas públicas, há subdivisões para cotas para pessoas pretas e pardas, para pessoas com deficiência e para pessoas com renda per capita abaixo de um salário mínimo e meio. Este modelo é exemplificado pelo fluxograma no próximo item do texto.

Há autonomia para universidades estaduais elaborarem métodos próprios de seleção através do sistema de cotas. Na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), por exemplo, há também um vestibular separado para pessoas indígenas, implementado recentemente e outras seleções, uma inclusive por mérito, destinada a aprovar estudantes a partir de seu desempenho em olimpíadas científicas e competições de conhecimento realizadas previamente ao vestibular, sem necessidade de prestarem a prova para ingresso na universidade.

A quantidade de vagas oferecidas para as cotas em algumas universidades estaduais, como a UNICAMP e a Universidade de São Paulo (USP) não estão apoiadas em critérios de proporcionalidade em relação à quantidade desses grupos na sociedade. Porém, estas duas universidades afirmam que tem como meta ampliar paulatinamente as cotas étnico-raciais até que elas sejam proporcionais. No caso das pessoas negras, este número está em torno de 37% do total da população no estado de São Paulo.

O fato de existir a meta para equiparar a porcentagem de vagas das cotas à proporção dessas pessoas na sociedade é positivo, pois garante que os espaços de estudo, pesquisa e trabalho sejam um espelho numérico da existência dessas pessoas na sociedade. É apenas uma metodologia possível, dentre as várias medidas ainda a ser tomadas para que se alcance a justiça individual e coletiva.

A matemática das cotas

Analisemos dois exemplos de políticas de cotas: a seleção do vestibular para ingresso em universidades públicas federais, determinada pela Lei 12.711 e alterada em 2016; e a seleção para cargos federais do governo federal regida pela lei 12.990[12] de 2014.

A lei que versa sobre as cotas em universidades determina que 50% das vagas sejam reservadas para estudantes que tenham cursado o ensino médio integralmente em escolas públicas. Destas, metade – ou seja, 25% do total de vagas oferecidas pela universidade – se destina a estudantes com renda familiar per capita inferior a um salário mínimo e meio e a outra metade (também 25% do total), a estudantes com renda familiar per capita superior a um salário mínimo e meio. Em cada uma dessas subdivisões, há também as cotas para pessoas negras e indígenas e também para pessoas com deficiência, estabelecidas de forma proporcional à quantidade numérica desses grupos na população, de acordo com o censo anterior do IBGE no ano em questão[13].  

O modelo é exemplificado de acordo com o fluxograma abaixo, disponibilizado no site do Ministério da Educação (MEC)[14]:

Nos primeiros quatro anos da lei, foi determinado que as/os estudantes cotistas concorressem tanto às vagas das cotas quanto as da ampla concorrência. Depois, ficaria a cargo de cada universidade decidir manter ou não o modelo. Atualmente observa-se que várias universidades adotaram o modelo de inscrição no vestibular a partir da divisão entre dois grupos: o grupo das cotas e o grupo da ampla concorrência. Neste caso, a/o estudante que se enquadra nos critérios para vagas cotistas, pode concorrer apenas em um dos grupos, o grupo escolhido pelo próprio estudante. Dessa forma, se estabelece dois grupos diferentes de seleção, que, em geral, tem notas de corte diferentes – lembrando que a nota de corte é a nota mínima alcançada pelas/os ingressantes do ano anterior e que passa a valer como a nota mínima a ser pontuada para ingressar no ano corrente.

São também diferentes as possibilidades de métodos que organizam a distribuição de vagas remanescentes. No vídeo “Cotistas na ampla concorrência? Entendendo a questão”[15] alguns exemplos são demonstrados através de fluxogramas: uma opção é que as vagas remanescentes tanto das cotas quando da ampla concorrência sejam acessadas por todos os inscritos que estejam nas listas de espera, tanto a lista de espera do grupo das cotas quando a lista de espera do grupo da ampla concorrência. Outra opção é que as vagas remanescentes de cada modalidade sejam disponibilizadas apenas para as pessoas inscritas nesta ou naquela modalidade.

A lei que institui a reserva de vagas para cargos públicos federais define que 20% das vagas sejam reservadas para candidatas e candidatos negros. Esta lei estabelece que as/os candidatas/os podem concorrer concomitantemente tanto para as vagas das cotas quando para as vagas da ampla concorrência. Ou seja, caso os candidatos cotistas tenham pontuado com nota de corte suficiente para concorrer no grupo da ampla concorrência, eles podem concorrer também neste grupo, ao mesmo tempo em que concorrem para o grupo das cotas.

Os exemplos citados demonstram as várias possibilidades de se aplicar a metodologia da reserva de vagas: 1) candidatas/os que se enquadram nos critérios para vagas cotistas concorrem ao mesmo tempo nos dois grupos: o grupo de cotas e o grupo da ampla concorrência; 2) candidatas/os tem que optar em concorrer para uma das duas modalidades: o grupo de cotas ou o grupo da ampla concorrência; 3) as vagas reservadas podem ser atreladas à proporção que se encontram os indivíduos desse grupo na população ou serem definidas por outros critérios; 4) pode haver um primeiro filtro de reserva de vagas a partir do qual se define outros filtros; 5) pode haver um ou mais filtros de reserva de vagas, que ocorrem ao mesmo tempo sem relação um com o outro; 6) as vagas remanescentes podem, por sua vez, ser distribuídas de diferentes formas, restringindo ou ampliando o acesso.

Edital Ações em Rede da Secretaria de Cultura de Campinas

Vamos enfim à análise das regras de reserva de vagas estabelecidas no edital “Ações em Rede” da Secretaria Municipal de Campinas, que é o objetivo principal deste texto. As reflexões seguem mescladas com as perguntas e sugestões.

Primeiro trecho de análise.

O texto do edital define na página quatro:

“4.2 Fica reservado o percentual de 50% (cinquenta por cento) das vagas oferecidas neste edital para PROPONENTES que, comprovadamente, apresentarem os seguintes requisitos:

4.2.1. Pessoas negras, pardas e indígenas, cuja condição deverá ser comprovada mediante autodeclaração apresentada Anexo I – Modelo de Autodeclaração Étnico-Racial: 20% (vinte por cento);

4.2.2. Pessoas transgêneros, cuja condição deverá ser comprovada mediante autodeclaração apresentada conforme Anexo II – Modelo de Autodeclaração de Pessoas Transgêneros: 10% (dez por cento);

 4.2.3. Mulheres cisgêneros, cuja condição deverá ser comprovada por meio da cédula de identidade: 20% (vinte por cento)”

Segue a análise de alguns pontos referentes a esse trecho, seguida de perguntas e sugestões de melhoria:

O sistema de reserva de vagas estabelecido pelo edital funciona a partir do princípio de vários filtros em separado, sem relação um com o outro. O primeiro filtro citado no texto do edital é a reserva para pessoas negras, pardas e indígenas. Para esse grupo, são reservadas 20% das vagas.

D acordo com o censo do IBGE de 2010, referente à cidade de Campinas[16], a porcentagem de pessoas pretas, pardas e indígenas no município de Campinas é de 31%. Logo, observa-se que a reserva de vagas de 20% apresentada no edital, atende a outro critério que não o de proporcionalidade.

Pergunta 1: qual foi o critério utilizado para se chegar ao número de 20% no item 4.2.1 do edital?

No edital, a reserva de vagas para pessoas transgênero é de 10%. No último censo do IBGE não há dados sobre a quantidade de pessoas transgênero na cidade.

Pergunta 2: qual foi o critério utilizado para se chegar ao número de 10% no item 4.2.2 do edital?

No edital, há a reserva de vagas para mulheres “cisgênero”, que é de 20%. Aqui se colocam três questões.

A primeira é sobre o conceito “cisgênero”, que no momento não existe no censo do IBGE. Este conceito está atualmente em debate em vários países, o debate é extenso e não cabe neste curto texto. Porém, é válido apontar que um dos argumentos envolvidos neste debate critica o uso do termo “cisgênero” no caso das mulheres e o classifica enquanto um conceito misógino e que responsabiliza e culpabiliza as mulheres pelas construções sociais violentas de gênero das quais são vítimas na sociedade patriarcal, ou seja, é um conceito que violenta as mulheres. É importante que as instituições públicas utilizem linguagem e conceitos que não violentem grupos da sociedade. Nesse sentido, segue a sugestão:

Sugestão 1: que a categoria das mulheres seja referida enquanto “mulheres” ou então  “mulheres assignadas mulheres ao nascer”, ao invés de “mulheres cisgênero”.

O segundo ponto sobre este item do edital é em relação à porcentagem das mulheres no município de Campinas.  De acordo com o censo do IBGE de 2010 as mulheres equivalem à 51,7% do total da população. Logo, observa-se que o critério de reserva de 20% das vagas para mulheres não segue o princípio de proporcionalidade.

Pergunta 3: qual foi o critério utilizado para se chegar ao número de 20% no item 4.2.3 do edital?

O terceiro ponto sobre este item é sobre a obrigatoriedade de comprovação para uma mulher “cisgênero” através da cédula de identidade. Primeiramente, a cédula de identidade não trás impressos os conceito de “cisgenereidade” ou “transexualidade”, tampouco trás a informação sobre o sexo da pessoa. O documento que informa o sexo da pessoa é o registro civil (certidão de nascimento e outros documentos, como a certidão de casamento). Segundo, desde 2018 é possível no Brasil que a pessoa transgênera ou transexual altere a informação sobre seu sexo no seu registro civil[17]. Ou seja, atualmente, nem todos os registros civis apresentam a informação sobre qual foi o sexo ou gênero da pessoa assignado ao nascer.

Sugestão 2: retirar a necessidade de comprovação para a reserva de vagas para mulheres assignadas mulheres ao nascer (identificadas no edital como mulheres “cisgênero”), já que atualmente não existe forma de comprovar esse tema através dos documentos pessoais.

Outra questão sobre este primeiro trecho do edital, diz respeito à forma de concorrência dos inscritos e inscritas cotistas. Não está escrito no edital se os cotistas estarão concorrendo apenas às vagas destinadas às cotas ou se estarão concorrendo concomitantemente às vagas das cotas e às vagas da ampla concorrência. São dois sistemas diferentes e é importante que este ponto esteja explicado no edital. Logo, segue a quarta pergunta:

Quarta pergunta: as candidatas e candidatos cotistas estarão concorrendo apenas às vagas das cotas ou estarão concorrendo concomitantemente às vagas das cotas e às vagas da ampla concorrência?

Quinta pergunta: por que não foi criada uma cota para pessoas homossexuais – lésbicas e gays – no edital, tendo em vista que, assim como outros grupos, esse é um grupo historicamente violentado na sociedade brasileira?

Sexta pergunta: por que não foi criada uma cota para pessoas com deficiência no edital, como existe nos processos seletivos para vestibular que adotam o sistema de cotas?

Sétima pergunta: por que não foi criada uma cota para pessoas de baixa renda, como existe nos processos seletivos para vestibular que adotam o sistema de cotas?

Segundo trecho de análise.

O trecho está localizado na página 15:

“14.6. Nos casos de empate, inclusive para as vagas reservadas no item 4.2 deste edital, o desempate será feito de acordo com os seguintes critérios de priorização:

14.6.1. proponentes mulheres negras e/ou indígenas;

14.6.2. proponentes transgêneros;

14.6.3. proponentes mães solo brancas;

14.6.4. proponentes homens negros e/ou indígenas;

14.6.5. proponentes com a maior idade.

14.7. Persistindo o empate no módulo, será realizado sorteio público, preferencialmente on line, em dia e horário estabelecido pela Comissão Administrativa, sendo feita convocação por meio de publicação no Diário Oficial do Município de Campinas e pelo e-mail informado no ato da inscrição.”

A ideia de priorizar pessoas desfavorecidas socialmente no caso de haver empate na pontuação entre projetos é importante. Porém, para que se coloque essa idéia em prática, há que existir critérios que definam a ordem de prioridade. É importante pontuar que atualmente este debate vem sendo aprofundado nos campos teóricos – seja acadêmicos, dos movimentos sociais ou da produção de conhecimento na sociedade – principalmente  nas perspectivas feministas, perspectivas negras e perspectivas dos segmentos das populações LGBT.

Pode-se afirmar que há alguns consensos e também discordâncias em relação à esse tema. Os consensos estão localizados nos extremos da linha que localiza as pessoas de acordo com alguns marcadores. Em um extremo estão os homens brancos, heterossexuais, ricos e sem deficiência. Estes seriam o exemplo do máximo privilégio e também de grupo que violenta os demais grupos. No outro extremo estão as mulheres negras e indígenas, pobres, lésbicas e com deficiência. Esse seria o grupo que mais sofre violência, não apenas cometida pelo grupo do outro extremo, mas, de todos os outros grupos existentes na linha, a partir da idéia de que as violências se entrecruzam e se reforçam. Essa idéia dialoga com o conceito de interseccionalidade. Há um consenso sobre esses dois grupos representarem os extremos dos regimes de violência que existem nas sociedades – o patriarcado, o racismo, a heterosexualidade enquanto regime de dominação, o capitalismo e também o funcionamento do capacitismo.

Há em curso muitos debates que analisam os grupos que estão no meio dessa linha: homens negros heteros e ricos, mulheres brancas lésbicas e pobres, homens negros gays e pobres, mulheres brancas heteras e pobres, homens brancos transsexuais e ricos, mulheres brancas transsexuais e de classe média, mulheres negras e mães solo, mulheres brancas e mães solos, homens brancos gays e pobres, mulheres negras lésbicas jovens e de classe média, mulheres negras ricas heteras e velhas, homens negros heteros velhos e de classe média, e assim por diante. Nem sempre é fácil dizer quem sofre mais violência. O que se pode afirmar é que os regimes do racismo, patriarcado, capitalismo, heterosexualidade e capacitismo estão sempre agindo e eles agem em conjunto. E ainda, uma mesma pessoa pode ser vitimizada por um regime de violência e ao mesmo tempo, fazer parte de outro grupo privilegiado que violenta, ou que tem privilégios ou vantagens em relação aos demais grupos.

Neste sentido e seguindo a ordem de prioridades colocada pelo edital “Ações em Rede”, coloca-se as perguntas: um homem negro está sujeito a menos violências do que uma mãe solo branca, por isso estaria abaixo na ordem de prioridades? Uma mãe solo branca está sujeita a menos violências do que uma pessoa transgênera? Uma pessoa de maior idade está sujeita à menos violência do que um homem indígena? Essas perguntas nem sempre tem respostas óbvias, porém, são necessárias respostas para que sejam definidos os critérios deste e de qualquer edital. Por isso, coloca-se a pergunta:

Oitava pergunta: quais foram os critérios utilizados para estabelecer a ordem de prioridades de seleção no caso de empate de projetos, encontrada no item 14.6?

Seguindo as reflexões sobre o item do desempate. Mães solo brancas e pessoas de maior idade se encontram neste item. Se estes dois grupos foram inseridos no item sobre desempate junto aos outros grupos que, por sua vez, tiveram reservas de vagas neste edital (pessoas transgênero e pessoas negras e indígenas), porque os grupos das mães solo e pessoas de maior idade não foram também inseridos na política de reserva de vagas? E ainda, o grupo das mulheres (referidas como mulheres “cisgênero”) consta como grupo cotista, mas, não enquanto grupo citado no item sobre desempate. Logo, seguem as sextas e sétima perguntas:

Nona: Por que o grupo das mães solo e pessoas de maior idade são citados como grupos no item 14.6, que versa sobre desempate de projeto, mas, não são citados enquanto grupos cotistas no item 4.2?

Décima pergunta: Por que o grupo das mulheres é citado como grupo cotista no item 4.2, mas, não é citado como grupo prioritário no item 14.6 que versa sobre desempate de projetos, como ocorre com os outros grupos cotistas?

A última reflexão é ainda sobre o item 14.6, referente ao trecho “Nos casos de empate, inclusive para as vagas reservadas no item 4.2 deste edital (…)”. O item 14.6 anuncia que na seleção que decidir sobre o empate de projetos haverá uma ordem de prioridade tanto para as vagas da ampla concorrência quanto para as vagas cotistas. Porém, como não foi anunciado anteriormente se os cotistas estarão concorrendo concomitantemente tanto ao grupo cotista como ao grupo da ampla concorrência ou então se as pessoas que se enquadram na descrição dos cotistas podem optar por concorrer exclusivamente pelo grupo da ampla concorrência, não é possível saber de que forma a ordem de prioridades se aplica. Ou seja,

Pergunta 11, divida em 3 partes: os projetos dos vários grupos de cotas que estiverem empatados serão selecionados a partir da ordem de prioridades vistas no conjunto dos grupos de cotas? E ainda, essa ordem de prioridades será implementada também no grupo da ampla concorrência, para os candidatos que se enquadram na descrição de cotistas, mas, que escolheram concorrer pelo grupo da ampla concorrência? Ou a ordem de prioridades será implementada ao mesmo tempo nos dois grupos: o grupo dos cotistas (que contém subgrupos) e no grupo da ampla concorrência?

Com essas reflexões e perguntas, encerro este texto, com o intuito de questionar o poder público de Campinas sobre termos e critérios e requisitar maiores explicações sobre o edital “Ações em Rede”.

Reafirmo a necessidade e importância de políticas de reserva de vagas em seleções para vagas em instituições de ensino, vagas de emprego e concorrência a editais e espaços diversos. A política de reserva de vagas é um passo importante do processo de reparação de violências históricas contra grupos na sociedade. Abordo inclusive este tema no texto que escrevi em fevereiro de 2020: “Cotas para tudo, cotas para a maioria e revezamento de funções”[18].

Envio o texto acima ao poder público de Campinas no intuito de aprofundar as reflexões sobre o tema da reserva de vagas em editais.

Agradeço a atenção,

Daniela Alvares Beskow, 26 de agosto de 2020.

Daniela é artista da dança da cidade de Campinas. Daniela é também escritora, produtora, fotógrafa, criadora de filmes de dança e investigadora do movimento. Bacharel em Ciências Políticas (UNICAMP), licenciada em Ciências Sociais (UNICAMP), bacharel em Comunicação das Artes do Corpo (PUCSP) e mestre em Artes Cênicas (UNESP). Integra movimentos sociais referentes à comunicação, artes cênicas e feminismo desde o ano de 2000. Idealizadora do Projeto Camdança (2015-2019), destinado a fortalecer a dança na cidade de Campinas e do grupo no Facebook “Trabalho em rede: mulheres nas artes”. Dentre os seus temas de pesquisa estão: violência, violência contra as mulheres, mulheres enquanto sujeitas políticas, movimentos feministas no Brasil, investigação do movimento, dramaturgia cênica, processos de tomada de decisão e método. Autora do livreto “Artes cênicas e trabalho no Brasil: proposta para eliminar a precarização”. Seus escritos podem ser encontrados no site Palavra e Meia[19].

Este texto foi enviado à Secretaria Municipal de Campinas no dia 26 de outubro de 2020, para o email: editais.cultura@campinas.sp.gov.br. Este texto foi também publicado no site Palavra e Meia no mesmo dia.


[1] Ensaio escrito por Daniela Alvares Beskow. Publicado em www.palavraemeia.com no dia 26 de agosto de 2020.

[2] https://portalcultura.campinas.sp.gov.br/editais/2020-chamada-publica-no-022020-acoes-rede

[3] “Legislação sobre escravos africanos na América Portuguesa”. Livro organizado e compilado por Silvia Hunold Lara, 2000. Acesse: http://www.larramendi.es/i18n/catalogo_imagenes/grupo.cmd?path=1000203

[4] “Escravos, libertos, filhos de africanos livres, não livres, pretos, ingênuos: negros nas legislações nacionais do séc. XIX”. Artigo de Surya Pombo de Barros, 2016. Acesse: https://www.scielo.br/pdf/ep/v42n3/1517-9702-ep-42-3-0591.pdf

[5] “História da criminalização da homossexualidade no Brasil: da sodomia ao homossexualismo”. Iniciação científica escrita por Érika Aparecida Pretes e Túlio Vianna. Publicada em 2008 no livro “Iniciação científica. Destaques 2007” organizado por Wolney Lobato, Cláudia de Vihena Schayer Sabino e João Francisco de Abreu. Acesse em: https://vetustup.files.wordpress.com/2013/05/historia-da-criminalizacao-da-homossexualidade-no-brasil-da-sodomia-ao-homossexualismo-tc3balio-l-vianna.pdf

[6] “A história do direito ao voto no Brasil”. Monografia escrita por Alvina Gonçalves Azevedo, 2018. Acesse: https://repositorio.ufu.br/bitstream/123456789/22181/3/Hist%C3%B3riaVotoBrasil.pdf

[7] “A mulher no código civil de 1916. Ou, mais do mesmo”. Artigo de Teresa Cristina de Novaes Marques, 2004. Acesse em: periódicos.unb.br através da digitação do título e nome da autora.

[8] Lei 9.100 de 29 de setembro de 1995. Acesse: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9100.htm

[9] Lei 9.504 de 30 de setembro de 1997. Acesse: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9504.htm

[10] Lei 13.165 de 29de setembro de 2015. Acesse: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13165.htm

[11] Lei 12.711 de 29 de agosto de 2012. Acesse: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12711.htm

[12] Lei 12.990 de 9 de junho de 2014. Acesse: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2014/lei/l12990.htm

[13] http://portal.mec.gov.br/cotas/perguntas-frequentes.html

[14] http://portal.mec.gov.br/cotas/sobre-sistema.html

[15] “Cotistas na ampla concorrência? Entendendo a questão”. Video de Matheus Figueiredo. Acesse: https://www.youtube.com/watch?v=Z13glwPWkOI

[16] https://cidades.ibge.gov.br/brasil/sp/campinas/panorama e https://cidades.ibge.gov.br/brasil/sp/campinas/pesquisa/23/22107

[17] https://www.ibdfam.org.br/noticias/6884/Mudança+de+nome+e+sexo+no+registro+civil+é+destaque+na+Revista+Cientpifica+do+IBDFAM

[18] http://www.palavraemeia.com/uma-coluna-por-sexta/cotas-para-tudo-cotas-para-a-maioria-e-revezamento-de-funcoes/

[19] www.palavraemeia.com