Esboço “As ausências nos movimentos pela liberdade”
É importante observar as ausências, o que não é explicitado, o que não é debatido nem veiculado de forma impressa. Observemos os movimentos sociais que vem lutando pelo fim da violência e exploração nos diversos campos das lutas – movimentos anarquistas, movimentos de partidos de esquerda, movimentos negros, movimentos feministas, movimentos LGBT, movimentos lésbicos. Em vários momentos da história, muitas vezes trazem consigo centralização de pautas, ou seja, preferência de algumas pautas em detrimentos de várias outras. E não apenas a pauta, mas, a própria perspectiva de produção de discurso. Os grupos têm uma tendência de homogeneizar a perspectiva, ainda que haja diversidade de pontos de vista em um mesmo grupo. O processo de homogeneização passa por relações de poder, violência simbólica, violência psicológica, apagamento, silenciamento. Em suma, um processo de invisibilização de temas, perspectivas e logo, de epistemologias.
Um dos inícios do movimento feminista, entre final do séc. XIX e início do séc. XX, por exemplo, é bastante centrado na questão do voto das mulheres e seus direitos trabalhistas. Onde estava, porém, a crítica à violência contra pessoas negras em um país que tinha recém saído formalmente do contexto de escravização de pessoas negras? Onde estava a crítica à impossibilidade de mulheres lésbicas se afirmarem lésbicas publicamente? Já o movimento LGBT da década de 70, fazia uma crítica à exploração econômica, ao regime capitalista? O movimento negro da mesma década, questionava a violência contra as mulheres dentro das comunidades negras? O feminismo lésbico tem pensado sobre a violência à maternidade, sobre o racismo, sobre a desigualdade econômica? Os partidos de esquerda, por que no início do séc. XX não questionavam e ainda não questionam de forma incisiva o regime da heterosexualidade, o contexto patriarcal nas organizações coletivas, as violências que os homens que compõe esses grupos, cometem contra as mulheres?Por que os movimentos anarquistas do início do séc. XX nas Américas não pautavam com constância a violência contra pessoas negras, a escravização no continente? Por que os movimentos anarquistas não lutavam pelo fim da violência contra gays? Porque historicamente todos esses grupos e movimentos pouco falam da violência estatal cometida contra indígenas no Brasil? Pior, muitas vezes, vários desses movimentos eram abertamente contra pessoas homosexuais, por exemplo, ou contra mulheres que criticavam a violência cometida pelos homens contra elas. Ou seja, não apenas não pautavam a crítica, como também, reforçavam a violência através de práticas e discurso.
As violências se entrelaçam e reforçam umas às outras. Os regimes de dominação patriarcal, heteronormativo, racista e capitalista existem em conjunto e não separadamente. São regimes de violência e devem ser criticados e combatidos, todos eles. Porém, ao invés de integrar as lutas, a maioria dos movimentos opta por setoriza-las, evidenciar um ou outro aspecto do contexto total da violência. Muitos grupos optam por lutar contra aquilo que os afeta diretamente, ao invés de pensar todas as violências contra seres humanos, além de hierarquizar a importância dos vários regimes que afetam diretamente aquele grupo. Por exemplo, o movimento LGBT, que apesar de ser composto por homens e mulheres, deixou de se posicionar por muito tempo sobre a violência que homens cometem contra mulheres, dentro e fora do meio LGBT. Há uma hierarquia dentro do grupo, onde homens acabam por predominar na definição de pautas e perspectivas. E assim podemos pensar os outro grupos. Homens vêm se sobrepondo às mulheres em todos os movimentos sociais, sem exceção. Já nos movimentos de mulheres, há as hierarquias referentes à raça/etnia e orientação sexual.
Essa hierarquização de pautas ocorre também porque os regimes de dominação também estão presentes dentro dos movimentos sociais. Racismo, homofobia, lesbofobia, violência patriarcal e capitalista, estão presentes nos movimentos sociais.
A violência age de forma entrelaçada, os regimes de dominação se apóiam uns nos outros. Enquanto as lutas não foram também entrelaçadas e não combaterem todos esses regimes ao mesmo tempo, a violência contra pessoas e grupos continuará existindo. Até porque quando se corta apenas um galho de uma árvore, outro volta a crescer, enquanto os outros seguem se fortalecendo. Sem falar na cooptação de pautas que os regimes de dominação realizam.
É preciso ir à raiz das violências. É preciso que as violências sejam eliminadas por completo. É preciso uma vida de liberdade e sem violências, para todas as pessoas, imediamente.
Daniela Alvares Beskow
04 de julho de 2020