Cotas para tudo, cotas para a maioria e revezamento de funções

A sociedade brasileira, assim como todas as sociedades, é resultado de processos históricos de exclusão e violência. Tempo demais se passou sem que fossem tomadas atitudes de transformação por completo desses contextos. Não é aceitável que continuemos mantendo opressões. As transformações tem que ser para agora. O sistema de cotas é uma das possibilidades de mudança de panorama, é não apenas uma ação de reparação histórica, mas, de ajuste aos princípios da democracia.

Faz alguns anos que o Brasil começou a implementar o sistema de cotas para processos seletivos e ocupação de cargos. Em 1991 houve decisão sobre pessoas com deficiência em cargos de empresasi; Entre 1995 e 2018 vem sendo aprovadas leis sobre candidatas mulheres para eleições municipais e gerais no país, como descrito ao longo deste texto; E em 2012 foi sancionada a lei que dispõe sobre cotas para ingresso nas universidades públicas federais, contemplando estudantes oriundos de escolas públicas e dentro dessa cota, está a obrigatoriedade proporcional para “autodeclarados pretos, pardos e indígenas e pessoas com deficiência” de acordo com a proporção encontrada na população a partir dos dados fornecidos pelo IBGEii. Vale lembrar que as cotas raciais já vinham sendo implementadas antes da lei, sendo a UNB a primeira a realizar processo seletivo a partir desta prática, em 2003iii; Desde 2018 algumas universidades vem estabelecendo cotas para pessoas trans, quilombolas e autistas, em um processo que atualmente está em debate e que não é regulamentado por leis.

Abaixo, os detalhes sobre cotas para a participação de mulheres na política representativa e em seguida, reflexão sobre cotas para tudo e revezamento de funções. Se você já sabe do histórico a seguir, vá direto para a conclusão e em seguida para o item “cotas para tudo”.

MULHERES E CANDIDATURAS PARA ELEIÇÕES

>> Em 1995 foi definida a lei de cotas para mulheres na política, que determinava o mínimo de 20% para candidatas mulheres em cada partido a partir das eleições municipais de 1996, ou seja, para o cargo de vereadora.iv

Em 1997, regulamentando as eleições gerais de 1998, a Lei 9.504 determinou que “ (…) cada partido ou coligação deverá reservar o mínimo de trinta por cento e o máximo de setenta por cento para candidaturas de cada sexo”. Observa-se que da ideia de “mínimo de candidaturas de mulheres” proposta em 1995 houve em 1997 uma alteração para “máximo de candidaturas de mulheres”, a de 70%. Provavelmente houve uma tentativa de neutralizar o texto, não conferindo especificidades à nenhum dos sexos, pois, a lei determina mínimo e máximo para ambos os sexos. Porém, este texto expressa novamente uma restrição a participação das mulheres na política. Durante toda a história representativa no Brasil, homens ocuparam quase que 100% das cadeiras no Senado e Câmara. Nunca houve lei que restringisse a participação dos homens em até 70% nas candidaturas, quem dirá, nas cadeiras ocupadas. A partir do momento em que se passa a intensificar as reivindicações para que houvesse instrumentos formais da política representativa que incentivassem ou garantissem maior participação das mulheres na política, logo é aprovada lei que à primeira vista incentiva essa participação, com a determinação de que pelo menos 30% das candidaturas sejam preenchidas por homens ou por mulheres, mas, que ao mesmo tempo siginifica não apenas que homens poderão ter no máximo 70% das candidaturas, mas, mulheres também. Ou seja, se durante aproxidamente um século homens ocuparam praticamente 100% das cadeiras no parlamento, a lei de 1997 deixa explícito que essa nunca será uma possibilidade para as mulheres. Que tenham no mínimo 30% das candidaturas, mas, que não ultrapassem os 70%. Nessa caminhada lenta do acesso das mulheres ao poder político, a cota segue sendo apenas para candidaturas e não para cadeiras ocupadas. E transformar pessoas candidatas em pessoas eleitas é um processo que não depende apenas de obrigatoriedade sobre candidaturas, mas, sim, de processo eleitoral. E é sobre uma parte desse processo que vai versar a lei 13.165 de 2015, através de uma regra novamente insuficiente.

Em 2015, entendendo que sem recursos financeiros não se faz campanha, a Lei 13.165 define o mínimo de míseros 5% e máximo de 15% do Fundo Partidário para a campanha de candidatasv.

Em 2018 a Ação de Inconstitucionalidade (ADI) 5617/2018 julgou o Artigo Nono da Lei 13.165 como inconstitucional e aprovou que a partir de 2020, a distribuição dos recursos do Fundo Partidário fosse realizado de forma proporcional às candidaturas, ou seja, que no mínimo 30% fosse destinado às campanhas eleitoras de candidatas mulheres, e caso essa porcentagem fosse maior, assim seria a distribuição dos recursos, ou seja, de forma proporcional aos candidatos homens e candidatas mulheres. Dessa vez o passo foi certeiro. A distribuição dos recursos tem que ser proporcional. Porém, o tempo de TV ainda não foi incluído nesta conta…

Dois meses depois foi aprovado que o tempo de propaganda eleitoral na TV fosse proporcional aos candidatos homens e mulheres, ou seja, caso haja 40% de candidatas mulheres, 40% do tempo de propaganda deverá ser destinada à mulheres e 60% aos homens, e assim em todas as porcentagens.

Entre 1995 e 2018 se passaram 23 anos. Vinte e três anos para adequar o básico que deveria ter sido estabelecido já em 1995: cota para candidaturas e consequentemente com fundos eleitorais proporcionais e tempo proporcional de propaganda na TV. Ainda que já em 1995 esta lei já estivesse completa, ainda seria totalmente insuficiente, pois:

O objetivo é eliminar desigualdades históricas. Logo, a cota que versa sobre a participação de mulheres na política tem que ser para vagas preenchidas (cadeiras no parlamento) e não para candidaturas, assim como versam as cotas para pessoas com deficiência em vagas preenchidas em cargos de empresas e também as cotas para alunas e alunos de escolas públicas e pretos, partos, indígenas e pessoas com deficiência nas vagas preenchidas em cursos de universidades. As cotas tem que produzir resultados na prática e no cotidiano dos espaços sociais. Mulheres tem que ocupar o parlamento na mesma proporção em que ocupam a sociedade, de acordo com número ajustado a cada eleição pelos dados do IBGE. Qualquer lei que garanta menos do que isso, continuará a perpetuar desigualdades históricas. A mudança é para agora, esperamos tempos demais.<<

COTAS PARA TUDO

Cotas para tudo como reparação histórica e representatividade

Nos últimos séculos o Brasil tem se sustentado a partir de minorias privilegiadas que usurpam recursos do território, concentram suas riquezas e impedem o acesso da maioria da população à prosperidade, impedindo a segurança de um futuro que proporcione felicidade, bem estar e qualidade de vida para todas as pessoas que compõe a sociedade brasileira.

Uma das ideias da democracia representiva é não apenas que pessoas possam decidir livremente em quem escolher para gerir o país, mas, que, pessoas possam também se candidatar livremente. Deve ser uma opção para todas as pessoas maiores de idade a ação de candidatar-se. Aqui observa-se uma primeira incongruência entre este princípio da representação e a realidade com a qual se choca, advinda de regimes de poder patriarcais, racistas, capitalistas e heteronormativos. Pessoas que integram os grupos violentados pelos regimes citados são socialmente deslegitimadas em concorrer à cargos políticos. A democracia representativa se mesclou com os regimes de poder, ao invés de combatê-los.

A segunda ideia é que haja uma coerência entre representante e representada/o, onde interesses da maioria são de alguma forma transmitidos à minoria política e esta as coloca em prática. Esta ideia nasceu da prática representativa, não estando necessariamente nas suas regras de funcionamento, já que a ideia da representação determina que pessoas serão eleitas e terão liberdade para gerir a partir deste “mandato” concedido pela população. Porém, é necessário analisar teoria e prática para que possamos entender melhor a realidade. Logo, se há poucas mulheres políticas e poucas pessoas negras políticas, a representação não está sendo coerente, pois, a prática demonstra que pessoas governam para os interesses dos grupos aos quais estão ligados. Logo, se há maioria de homens e de pessoas brancas governando, os interesses de mulheres e negros não estão sendo levados em conta. E além, é preciso entender que vivências diversas geram perspectivas diversas. Ainda que uma pessoa branca elabore leis que sejam benéficas para a população negra, uma pessoa negra contribuirá de forma mais consistente para a elaboração desta mesma lei, já que sua perspectiva trás a experiência com o tema. É preciso diversidade de olhares, esta seria a conclusão mais óbvia para este princípio da representação, que é a coerência entre ações políticas e interesses da população.

As duas ideias acima – poder candidatar-se livremente a partir de um processo social que assim o permita e a importância da diversidade de olhares políticos na gestão do Estado – não vem sendo colocada em prática nos processos eleitorais e de gestão estatal. Indo além da política representativa, o mesmo ocorre com os contextos de emprego e de educação superior. Novamente são os grupos privilegiados que ocupam os melhores postos de trabalho, empurrando grande parte da população para sub-empregos, empregos informais, mal pagos ou socialmente mais desvalorizados. Também os grupos privilegiados vem tendo mais acesso à educação superior de qualidade, o que afeta o futuro empregatício e assim a bola de neve só aumenta.

As leis de cotas vem propondo que esses contextos de desigualdade sejam transformados no momento do acesso à determinados espaços na sociedade: política representativa, educação superior e empregos (a lei que rege este último item existe apenas para o caso de pessoas com deficência). São medidas necessárias e que devem vir com mais medidas.

As leis de cotas propõe uma importante transformação: o acesso aos espaços de formação, emprego e da política representativa devem ser democráticos, devem ser diversos, devem ser um reflexo da população e não instrumentos de poder contra ela.

Nesse sentido, conclui-se que as regras para cotas devem existir para todos os processos seletivos em todas as áreas. Todos os editais públicos, processos seletivos para empresas, seleções para espaços educacionais e outros, devem ser um reflexo proporcional da população, de acordo com a pesquisa do IBGE atualizada a cada ano. Essa é uma proposta que ajusta a democracia ao seus princípios e o faz de cima para baixo, ou seja, a partir de leis. O Estado deve funcionar a serviço da sociedade e a sociedade precisa de acesso igualitário aos recursos. E o acesso igualitário ocorre não através de vagas para candidaturas, mas, de vagas preenchidas. A realidade nos espaços sociais chave de um país tem que ser proporcional aos números populacionais. Se mulheres compõe 50% da população, 50% das vagas no parlamento tem que ser preenchidas por mulheres. E assim em todos os processos seletivos em todas as áreas de emprego. Esses números devem levar em conta todas as parcelas violentadas da população: mulheres, pessoas negras, população LGBT, pessoas com deficência, população indígena, quilombolas e assim por diante. E para isso as pesquisas do IBGE devem ser ampliadas para que saibamos quais os números exatos dessas parcelas na sociedade.

Chegamos a ponto de exigir leis que garantam cotas para a maioria, como é o caso de mulheres e de pessoas negras. Este absurdo expressa o quanto os regimes de dominação cooptaram a democracia, esta, um regime definido pela ideia da maioria no poder: demos (povo) e cracia (poder).

REVEZAMENTO DE FUNÇÕES

Concluo esta coluna apontando para a importância de pensarmos também as funções que ninguém quer realizar, como por exemplo os serviços de limpeza. A existência proporcional das parcelas da população devem também existir nesses espaços a partir de um revezamento. Os regimes de poder empurram os grupos violentados para as funções menos valorizadas socialmente, que na maioria das vezes são piores pagas. A maioria das estruturas e serviços em uma sociedade é utilizada por todas/os. Todas utilizamos luz, água, serviços de telefone, transportes coletivos, e assim por diante. Esses serviços são essenciais e todas/os usufruem deles. Porém, se todas/os pudessem escolher, dificilmente escolheriam trabalhar nas funções que tais serviços exigem, como por exemplo, recolher o lixo da cidade ou limpar os espaços coletivos. Para que uma sociedade seja democrática, as funções “chatas”, que ninguém quer fazer, tem também que refletir proporcionalmente os números da população e o ideal seria que ocorresse a partir de um revezamento. Cada pessoa poderia se especializar em uma função coletiva além da sua atividade profissional principal, dessa forma, ela teria duas formações, uma que orientasse sua escolha individual e outra que colaborasse com o coletivo, através de um revezamento.

Uma sociedade democrática tem o dever de se organizar coletivamente para que todas e todos tenham acesso aos recursos, a possibilidade de escolha e um futuro sem violência. Para que essa ideia seja realidade, são necessárias ações práticas, tanto da sociedade quanto do governo. Cotas para tudo e revezamento de funções são duas propostas que caminham nesse sentido.

Daniela Alvares Beskow

14 de fevereiro de 2020

Uma coluna por sexta

i Em 1991, a Lei 8.213, que dispõe sobre a Previdência Social, abordou a situação de pessoas com deficência: “A empresa com 100 (cem) ou mais empregados está obrigada a preencher de 2% (dois por cento) a 5% (cinco por cento) dos seus cargos com beneficiários reabilitados ou pessoas portadoras de deficiência (…)” LEI Nº 8.213, DE 24 DE JULHO DE 1991

https://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/1991/lei-8213-24-julho-1991-363650-publicacaooriginal-1-pl.html

iihttp://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12711.htm

iii“UnB tornou-se a primeira universidade federal a adotar cotas raciais em seus processos seletivos de ingresso na graduação. Aprovado no Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão (Cepe) no dia 6 de junho de 2003, o Plano de Metas para Integração Social, Étnica e Racial estabelecia que 20% das vagas do vestibular seriam destinadas a candidatos negros, além de prever a disponibilização de vagas para indígenas de acordo com demanda específica. A medida entrou em vigência no ano seguinte.” https://www.noticias.unb.br/76-institucional/2319-aprovacao-das-cotas-raciais-na-unb-completa-15-anos

ivLEI Nº 9.100, DE 29 DE SETEMBRO DE 1995.

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9100.htm

v Artigo Nono da Lei 13.165. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13165.htm