Quando a vítima é transformada em culpada

O recente caso da denúncia de tentativa de estupro realizada pela estudante Patricia Lelis contra o deputado e pastor Marcos Feliciano trás a tona mais uma vez a questão política que transforma mulheres vítimas de violência em culpadas. Aquelas que ousam questionar a ordem social que exige o silêncio são imediatamente punidas. O sistema patriarcal, assim como todos os indivíduos que o perpetuam, querem mulheres obedientes e caladas. A sequência dos fatos é amplamente conhecida, ainda que não refletida de forma crítica:

A mulher denuncia. Seguem as reações ao fato:

1. Ela está louca. É histérica, não bate bem das ideias. Está exagerando, não está avaliando bem a situação. Tem mania de perseguição. “Tem certeza? Será que você não interpretou mal?”. A mulher que denuncia está cometendo uma violência, está “expondo” a pessoa que acusa, está sendo agressiva demais e deveria poupar a pessoa que a violentou. A denúncia é um erro e a vítima que denuncia deve ser punida por tal ação.

2. Ela não está louca, porém, não deveria denunciar, pois, “está colocando sua própria vida em risco”, já que pode ser perseguida por sua ação e sofrer violência vingativa da pessoa que a violentou. Ela está “se expondo” ao colocar em público o que ocorreu. Ela deveria esquecer, “já passou”, a mulher deve tentar “superar” o que aconteceu e não “guardar mágoas”, ela não deve ser uma pessoa “ressentida”. Além do mais ela deve poupar a pessoa que a violentou do processo criminal, da cadeia, pois “vai destruir a vida da pessoa”. A mulher não deve ser “vingativa”.

3. Ela nem está louca e deve denunciar. Porém, “você não devia ter deixado essa violência acontecer”, “você deu confiança demais”, “espero que tenha aprendido uma lição com tudo isso”, “você deve aprender a escolher melhor as pessoas com quem anda”, e por aí vai.

Apesar de todas essas barreiras político-sociais colocadas entre as vítimas e a possibilidade de justiça e reparação de danos, há de fato muitas mulheres que denunciam, que ousam falar das violências que sofreram em público. E assim são julgadas das mais variadas formas e condenadas ao posto de “loucas”, “vingativas”, “más” e “pessoas confusas que não sabem avaliar bem com quem andam”. Antes mesmo de qualquer resolução jurídica sobre o caso, de qualquer reflexão sobre a questão política da violência e o questionamento sobre o caráter da pessoa acusada, a mulher vítima de violência é jogada aos leões, acusada e condenada socialmente na arena do pão de circo. Então é o caráter da vítima que é colocado em jogo.

A mulher que ousa falar em público sobre a violência que sofreu age diretamente contra a ordem patriarcal que exige que mulheres permaneçam no silêncio. Mulheres no espaço público devem no máximo servir aos ditames elaborados pelos homens. Dentre os principais estão o de atuar como elemento estético e produtor do desejo do macho. Ou ainda, inibidor do desejo do macho, quando exigida que se cubra em determinados espaços para que não “provoque o desejo dos homens”. Mulheres devem permanecer na interpretação dos homens que a coloca como produtora de desejo, como alívio estético, como “mãe responsável”, como “mulher trabalhadora”, como “filha obediente”, como “mulher bem resolvida e não ressentida”. No sistema patriarcal a mulher não cabe na arena política, na arena cotidiana da política que é o debate, a conversa coletiva em alto e bom som, a denúncia, a reflexão sobre a realidade e os sujeitos da realidade. A mulher deve ser bonita e calada.

Pois bem. Mulheres não são interpretações. Mulheres não são objetos, mulheres são sujeitos! Em pleno séc. XXI continuamos a gritar: MULHERES SÃO SUJEITOS! Nenhuma violência será tolerada.

O caso de Patricia Lelis deixa qualquer mulher estupefata. Tamanha é a força contra as vítimas de violência que não bastam as barreiras e acusações no âmbito social, são necessárias medidas jurídicas para reforçar a culpa das vítimas! Patricia Lelis está sendo processada por ousar denunciar a violência que sofreu, isso é um escândalo!

Contra todas as acusações sociais e questionando toda a estrutura que violenta e quer continuar mantendo a violência contra as mulheres, dizemos: aquela que denuncia é forte. A mulher que denuncia vai contra todo um sistema que a quer manter calada e submissa à ordem dos homens. Mulheres são fortes. Mesmo vítima da violência dos homens, continuam trabalhando, produzindo conhecimento e resistindo. Fortes, continuaremos denunciando todos aqueles que ousarem violentar, todos aqueles que se acham mais importantes, que se acham melhores ou superiores a ponto de atentar contra a dignidade humana de uma mulher, tirar vantagem, trapacear e violentar.

O sistema que transforma a vítima em culpada não faz sentido nenhum . Apenas faz sentido à ordem patriarcal que quer transformar vítimas em responsáveis pela violência que sofrem. Reforço, portanto: quem transforma uma pessoa é vítima é a pessoa que violenta, unicamente. A pessoa que violenta é a mesma pessoa que vitimiza. Vítimas são sujeitos violentados.

Daniela Alvares Beskow

Setembro/ 2016

Como citar essa coluna:

Beskow, Daniela Alvares. Quando a vítima é transformada em culpada. Palavra e Meia, Set. 2016. Colunas. Disponível em:< http://www.palavraemeia.com/colunas/quando-a-vitima-e-transformada-em-culpada/> Acesso em: [inserir data].