Esboços para uma dramaturgia cênica feminista: proposta

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Esboços para uma dramaturgia cênica feminista: proposta1

Este último capítulo é dedicado a traçar estratégias, propondo caminhos para a criação de dramaturgias cênicas feministas, considerando seu desenvolvimento nas práticas teatrais atuais. Os apontamentos que seguem derivam de várias fontes: da assistência e análise das peças que fazem parte desta amostragem, pesquisadas a partir da relação com o debate sobre patriarcado e feminismo; da experiência enquanto pesquisadora e feminista; da leitura e aprofundamento dos textos teóricos sobre feminismo e na prospecção e leitura crítica de textos que tratam do feminismo nos campos da prática e da teoria cênicas.

Ainda que nem todas as peças assistidas proponham visões críticas, é certo que resultam na crítica de suas visões, por vezes, mantenedoras de estereótipos. Além disso, a assistência às peças evidenciou os conceitos de gênero e de patriarcado, assim como a tríade mulher-gênero-patriarcado como categorias analíticas, situadas no momento atual do Brasil.

Os espetáculos que se propuseram a rever a mulher e as construções de gênero sob uma ótica crítica o fizeram através das propostas temáticas, de figurino, de movimentação, de interações entre corpos e destes corpos com o espaço, de iluminação, de sonoplastia, de expressão das emoções, etc. Reúno aqui propostas a partir de tudo que foi percebido -incluindo a percepção das ausências –formulado a partir de um pensamento feminista que observa na prática feminista dos movimentos sociais, ideias relevantes para o campo das artes cênicas.

Todo o trabalho realizado nesta pesquisa–pesquisa de campo, análise e reflexão sobre todas as peças assistidas, leituras, debates em aulas, encontros e congressos, reuniões de orientação, coleta de dados (entrevistas, peças e cenas em formato digital) –em conjunto com todos os debates e práticas feministas atualmente e historicamente, fundamentou o conceito de “dramaturgia cênica feminista”.

As práticas feministas, através de encontros entre mulheres, ações políticas e produção de conhecimento das mais diversas, têm caminhado para vários sentidos. Dentre alguns dos elementos praticados e notáveis não apenas no Brasil, mas, ao redor do mundo e em vários momentos históricos, destaco os que vêm estruturando a produção de epistemologias feministas, através de práticas e teorias. Encontros presenciais, fortalecimento de laços afetivos e de entendimento sobre a realidade, manifestações de rua, trocas teóricas em formações e cursos, organização e estruturação de movimentos sociais, criação de redes de solidariedade e de atuação política, projeção das mulheres nos espaços públicos e de tomada de decisões, além de produção de material escrito, audiovisual e cênico, ou seja, processos de constituição de epistemologias feministas, têm se estruturado a partir dos seguintes elementos e ações:

1) Concretização de espaços seguros, ou seja, espaços somente para mulheres, ou, espaços inclusivos de mulheres. Tais espaços promovem a ausência do elemento de dominação no patriarcado -ou seja, os homens –e logo, maior possibilidade de mulheres produzirem discursos além das relações de dominações patriarcais. Porém, atentas para as relações de dominação provenientes das relações de poder de certasclasses sociais e raças/etniassobre outras.

2) Mulheres falam de si e de suas experiências;

3) Mulheres reconhecem a história de outras mulheres como importantes e relevantes para serem debatidas e reconhecidas;

4) Mulheres falam de situações que violentam todas as mulheres, de formas diferentes e a partir de diferentes perspectivas;

5) Mulheres falam de situações que oprimem algumas mulheres, mas, outras não. E sobre isso, questionam sobre os privilégios existentes em grupos dominantes, a partir de contextos estruturais de classe, raça, orientação sexual e/ou outros, e propõe novas realidades;

6) Mulheres se colocam como sujeitos da história e produtoras de discurso.

7) Mulheres produzem conhecimento sobre temas explicitamente relativosagênero e à situação da mulher no patriarcado;

8) Mulheres produzem conhecimento sobre vários temas, principalmente aqueles não associados às mulheres no patriarcado;

9) Mulheres praticam o que não é socialmente visto como pertencente ao feminino e às mulheres;

10) Mulheres evidenciam realidades vividas por elas, dissociadas das imagens dominantes difundidas sobre as mulheres:mulheres velhas, mulheres gordas, mulheres não-feminilizadas, mulheres com deficiência e assim por diante;

11) Mulheres falam sobre mulheres que contribuíram de forma significativa para a história, tanto aquelas presentes hoje, como aquelas temporal e espacialmente distantes, mas, que não são relembradas pelas historiografias oficiais;

12) Mulheres se propõema agir e lutar pelo fim das desigualdades e violências que atingem todas as mulheres, de todas as raças, classes, territórios.

Esses elementos podem ser pensados e produzidos a partir da linguagem cênica, produzindo uma dramaturgia cênica em que:

1) Expressa a perspectiva de mulheres, resultante de produções realizadas por apenas mulheres, pois, tais produções são resultado da ausência do elemento de dominação no patriarcado, ou seja, os homens. Podendo então as mulheres produzir discursos além das relações de dominações patriarcais. Porém, atentas para as relações de dominação provenientes das relações de poder de certasclasses sociais e raças/etnia sobre outras. A possibilidade da existência de públicos composto somente por mulheres potencializa essa experiência.

2) As artistas falam de si enquanto mulheres e de suas experiências em cena nos processos criativos;

3) As artistas reconhecem a história de outras mulheres e falam sobre isso em cena e nos processos criativos;

4) As artistas falam de situações que violentam, de formas diferentes, todas as mulheres, em cena e nos processos criativos;

5) Em cena e nos processos criativos, as artistas falam de situações que oprimem algumas mulheres, mas, não outras. Sobre isso, contestam as relações de violência estrutural entre as mulheres e os privilégios que algumas mulheres têmsobre outras mulheres, propondo novas realidades;

6) As artistas se colocam como mulheres e em cena e também representam personagens mulheres que são produtoras de discurso e sujeitos da história;

7) As artistas abordam temas explicitamente relativos às questões de gênero e à mulher no patriarcado,tanto na cena como nos processos criativos;

8) As artistas abordam vários temas, especialmente aqueles relativos aos contextos em que predominam os homens como sujeitos e aos quais, em geral, as mulheres não têmacesso;

9) As artistas propõemcenas, movimentações, sonoridades, silêncios e construções imagéticas que questionam as estéticas associadas às figuras socialmente construídas da mulher e do feminino;

10) As artistas propõempersonagens que fogem ao padrão socialmente associado e exigido das mulheres: mulheres velhas, mulheres gordas, mulheres não-feminilizadas, mulheres com deficiência, e assim por diante;

11) As artistas falam sobre mulheres que contribuíram de forma significativa para a história -no meio social onde o espetáculo é apresentado -etambém sobre mulheres distantes daquele contexto (outras épocas, territórios e culturas);

12) As artistas propõem pautas de luta e ações pelo fim das desigualdades e violências que atingem todas as mulheres, de todas as raças, classes, e territórios.

Os pontos acima colocados são pensados através da investigação de várias linguagens cênicas (teatro, dança, performance, circo, música) e outras linguagens da comunicação e artes, além de investigar formas de expressão que abrem em cena os espaços concretos/reais, psíquicos e também os de dimensão simbólica. Trabalham a partir de textos escritos por mulheres, reconhecendo essa produção de discurso sobre a realidade e também de textos escritos por homens, criticando-os, transformando-os e produzindo versões feministas de alguns textos clássicos.

Conforme apontado acima, é importante destacar o desenvolvimento de uma dramaturgia cênica feminista a partir de modelos de trabalho, produção e criação de espetáculos que se proponham a combater o sistema patriarcal. Pode-se pensar o espetáculo que se propõe feminista também como um propositor no campo da organização social e do trabalho de base com mulheres. Ou seja, pensa-se a dramaturgia cênica da peça não desvinculada de seu contexto material de produção, mas como resultado desse trabalho e posicionamento de vida das agentes envolvidas e não como um momento a ser desfrutado por um público indistinto, o qual não se verá nunca mais, mas como uma ferramenta de construção de contextos que visem o fim das violências. Azevedo (2011), da Companhia Kiwi:

“Mas, que teatro é esse? Justamente aquele que se lambuza de vida, está em constante diálogo com a realidade, se arrisca na busca de novas formas que desafiem o pensamento das pessoas que dele fazem parte (atuantes na cena e no público), atendem às necessidades dos chamados com ousadia e coragem de colocar em prática o exercício dialético (sem perder o rumo e posição política clara). Uma das principais características deste teatro é o funcionamento em rede, em parceria com os movimentos sociais.” (AZEVEDO, 201, p.1).

Nesse contexto, a acessibilidade é também fator importante a ser considerado no processo de produção de peças que se dedicam a questionar a situação das mulheres no patriarcado, ou melhor, de peças feministas. A acessibilidade pode ser pensada tanto em termos do valor do ingresso quanto dos espaços físicos onde a peça é apresentada. Ou seja, valores acessíveis para todas as pessoas (pode-se pensar na cobrança de valores de acordo com a renda de cada pessoa do público) e locais que sejam acessíveis para uma grande quantidade e diversidade de pessoas, podendo esse elemento ser pensado a partir dos horários apresentados (manhã, tarde ou noite) e das regiões na cidade onde se apresenta a peça.

Esta pesquisa, portanto, finaliza com propostas práticas para debate e ativação no meio artístico teatral e feminista. Reconhece a importância do que já foi produzido em artes cênicas na relação com a crítica ao patriarcado, à feminilidade e às violências praticadas contra as mulheres. Olha para o presente, para as produções e movimentos atuais. Olha também para o futuro, pronta para continuar agindo sobre a realidade, vislumbrando um contexto em que não haja mais violência de nenhum tipo e também a possibilidade de que a arte seja construída por todas e todos, promovendo mais ricos e complexos pontos de vista sobre a realidade. Então, mãos à obra!

1Trecho da dissertação da mestrado de Daniela Alvares Beskow “O discurso das mulheres na cena paulista de 2015-2016: uma proposta feminista de análise de espetáculos”. Orientação: Profa. Dra. Lúcia Regina Vieira Romano. Defendida em junho de 2017 na Universidade Paulista (UNESP). Página 152 até 156. Disponível em: https://repositorio.unesp.br/bitstream/handle/11449/152099/beskow_da_me_ia_sub.pdf?sequence=6&isAllowed=y