Ensaio sobre a Visibilidade

Parte 1: Visibilizar: tornar visível

Agosto é o mês da Visibilidade Lésbica no Brasil. Para somar às atividades deste mês em 2020, escrevo este ensaio com o objetivo de introduzir algumas questões no que diz respeito à violência cometida contra mulheres lésbicas no regime de dominação da heterosexualidade e também para refletir sobre as mulheres lésbicas enquanto sujeitas políticas na sociedade.

Pode-se visibilizar um elemento de várias formas. No caso da visibilização de mulheres lésbicas enquanto sujeitas políticas e também da visibilização da oposição à violência contra as mulheres lésbicas na sociedade pode-se:

1) Tornar visível o tema, ou seja, falar sobre as mulheres lésbicas e também sobre a violência cometida contra lésbicas a partir de um ponto de vista crítico;

2) Falar sobre a perspectiva lésbica, ou seja, entender e difundir as perspectivas de entendimento da realidade produzida por lésbicas e integrá-las ao próprio discurso, ou seja, colocar essas perspectivas em diálogo, através do reconhecimento das perspectivas lésbicas enquanto válidas e construtoras do debate coletivo;

3) Difundir as idéias e práticas produzidas por lésbicas;

4) Propor  estratégias para a eliminação de violências contra mulheres lésbicas.

31 de julho de 2020

Parte 2: Lésbicas falam sobre todos os assuntos

É comum que pesquisadoras/es e a mídia busquem mulheres lésbicas para falar sobre o tema da lesbiandade e também em datas específicas como março, junho e agosto. É importante visibilizar as lésbicas não apenas reconhecendo seus discursos sobre lesbiandade e não apenas em datas simbólicas de luta, mas também, impulsionar seus discursos sobre qualquer assunto e em qualquer época do ano. É importante reconhecer e valorizar as mulheres lésbicas em todas as áreas profissionais. Elas estão aqui, trabalhando enquanto engenheiras, fotógrafas, coordenadoras de espaços culturais, cientistas, atendentes no comércio, contadoras, garis, advogadas, escritoras ,designers, faxineiras, deputadas, vereadoras, professoras, pesquisadoras, vendedoras, artesãs, enfermeiras, médicas, programadoras de softwares, psicólogas, assistentes sociais, atrizes, diretoras de cinema, donas de pequenos comércios, teóricas, atletas, farmacêuticas. Essas mulheres estão sendo reconhecidas em seus espaços de trabalho? Essas mulheres estão sendo reconhecidas no discurso social, nas conversas entre amigos, nos encontros de família, na mídia? Os conceitos produzidos por perspectivas teóricas lésbicas estão sendo debatidos? E também, há debate sobre a violência cometida contra mulheres lésbicas? O comportamento das pessoas que violentam está sendo questionado? Há movimentação política para propor leis e fiscalização que se oponha a esta violência? As mídias estão abordando esse assunto? Há invisibilização ou visibilização dessas questões atualmente? Essas são questões para fomentar o debate sobre a Visibilidade Lésbica.

01 de agosto

Parte 3: Mulheres lésbicas: alvos do ódio misógino, lesbofóbico, racista e capitalista

A lesbofobia é uma força muito forte na sociedade e abarca vários tipos de violências contra lésbicas, cometidas por pessoas do convívio familiar, nos círculos de amizades, por colegas de trabalho ou até mesmo por agentes estatais. Também é comum que pessoas estranhas violentem lésbicas, seja em espaços fechados ou nos espaços ao ar livre e públicos da sociedade. Há um contexto estrutural de violência contra lésbicas e gays, que é a heterosexualidade enquanto regime de dominação, imposição e punição de pessoas que não são heterosexuais. Este regime pode ser encontrado na maioria das sociedades. Poucas exceções ao longo da história promoveram ou promovem um espaço social de respeito e de não-violência contra lésbicas e gays. No caso das lésbicas, há um fator que intensifica essa violência. É o fator da misoginia. Lésbicas, além de pessoas homosexuais, são também mulheres. Como vivemos no patriarcado, estamos sob o regime do ódio contra as mulheres, que socialmente autoriza e estimula diversos tipos de abusos contra mulheres, sejam eles pontuais ou constantes, também a partir de uma lógica estrutural. Logo, mulheres que são também lésbicas, são alvo de violências reforçadas por pelo menos dois regimes de dominação. No caso das mulheres negras e indígenas – ou pertencentes à etnias não brancas, ou não reconhecidas como brancas – no Brasil, o regime do racismo intensifica ainda mais o contexto de violência. No caso de mulheres economicamente desfavorecidas, o capitalismo aprofunda essa violência e fragiliza ainda mais as mulheres. A seguir, reflexões sobre essas violências nos vários contextos e espaços sociais.

02 de agosto

Parte 4: Lesbofobia no ambiente de trabalho

Como pensar os ambientes de trabalho em relação às mulheres lésbicas? Como apontado acima, há uma violência estrutural contra mulheres lésbicas, advinda dos regimes de dominação do patriarcado e da heterosexualidade enquanto imposição. Esta violência é reforçada em todos os ambientes, incluindo os espaços de trabalho. A partir do momento em que uma mulher é identificada enquanto lésbica no seu ambiente de trabalho, se inicia uma rede de pequenas e grandes violências contra ela. Violências verbais e psicológicas são muito comuns: falas agressivas, indiferença e falta de reconhecimento de suas ideias na equipe, vetos intencionais que vão desde o não-convite para compor projetos até impedir sua ascensão na carreira, como por exemplo a não-ocupação de cargos considerados importantes ou a desvalorização financeira de sua atividade. Lésbicas são vistas como mulheres menos merecedoras de reconhecimento. Lésbicas que rejeitam os papéis estéticos atribuídos à feminilidade sofrem uma violência peculiar, que é o ódio e rejeição e violências baseadas também na sua corporeidade, como por exemplo, no assédio a essas mulheres quando freqüentam banheiros coletivos no ambiente de trabalho, na falta de cuidados e afeto, no abuso de sua mão de obra braçal ou ao sobrecarregar essas mulheres com trabalhos que poucas pessoas querem fazer. Muitas dessas lésbicas não-feminilizadas frequentemente não são aceitas em trabalhos onde sejam fisicamente visíveis, sendo empurradas para os depósitos de produtos, corredores das prisões enquanto carcereiras ou guardas noturnas, bastidores.

05 de agosto

Parte 5: A visibilidade que se constrói

Estar visível é também expressar a possibilidade de ser identificado. Identificamos algo quando este é de alguma forma, visível. A identificação trás nomeação, entendimento, reconhecimento, compartilhamento. A identificação também trás consigo a possibilidade da ciência coletiva. Quando algo está sinalizado, as pessoas tomam ciência deste elemento, tomam conhecimento. A visibilização de um elemento, logo, é um processo que ocorre a partir da complexidade, tanto no nível subjetivo e individual, como no objetivo, coletivo. Quando entendo de forma individual que algo existe, compreendo e elaboro para mim os significados daquilo para minha vida, minha materialidade. Quando percebo que outras pessoas entendem que este mesmo elemento existe, compreendo que elas compreendem e dessa forma, partilhamos da mesma ciência sobre um elemento. Porém, muitas vezes, partilhamos também de sentidos completamente diferentes sobre este elemento. Uma menina que entende que existe o elemento da lesbiandade, que entende que esta é uma realidade possível para o momento em que ela se tornar jovem e depois, adulta, tem a possibilidade de entender a lesbiandade de forma positiva. Porém, a lesbofobia promove a existência de significados negativos para a lesbiandade. E estes significados acompanham toda a existência de meninas e mulheres, gerando um choque de sentidos, gerando materialidades de sofrimento e também sobrevivência frente à um mundo de violência, mas, que poderia ser simplesmente um mundo de acolhimento, compreensão e impulsionamento do melhor de cada pessoa.

07 de agosto

Parte 6 Visibilizar é também ler, ouvir, comentar e citar as lésbicas

Tornar lésbicas visíveis implica também em ler e ouvir o que lésbicas estão falando. Estas falas ocorrem tanto no âmbito das teorias escritas e acadêmicas, quanto das escritas que derivam de experiências cotidianas e das ações entre lésbicas, além daquelas que surgem a partir de movimentos sociais diversos. Teoria não ocorre apenas na academia, mas, em todos os âmbitos da vida. Dos espaços mais ricos em produção de análise da realidade estão aqueles que ocorrem no dia a dia dos movimentos sociais, que combinam ações de manifesto e transformação do coletivo, com reuniões, conversas, escritas individuais e coletivas, exercícios de análise da realidade, debates. Esse processo gera leituras orais e também escritas. Nesse sentido, as lésbicas estão produzindo em vários lugares. No âmbito feminista é preciso ler as consideradas clássicas, ou seja, que tem seus nomes consolidados e também é preciso ler as que já se foram, mas, ainda não são lidas. É preciso uma arqueologia epistemológica. É preciso também ler as que estão escrevendo agora. Blogs, comentários em postagens, grupos digitais de debate, postagens curtas nas redes sociais. É importante valorizar esses pequenos grandes canais de comunicação. E é preciso incentivar que as lésbicas atuais, de todas as gerações, escrevam. É importante tanto escrever sobre histórias passadas, quanto analisar o presente, de forma a construir nossos olhares sobre a realidade. É preciso traduzir as teorias orais em palavra escrita.

13 de agosto

Parte 7 Heteras que exploram emocionalmente mulheres lésbicas

A partir da misoginia e da lesbofobia, lésbicas são também frequentemente enxergadas por mulheres heterosexuais, como pessoas que podem ser exploradas emocionalmente, amigas com menos valor do que as amigas heteras, cujo espaço na relação de amizade é cuidar da hetera, porém, não receber cuidado em troca. Mulheres heterosexuais frequentemente abusam emocionalmente suas amigas lésbicas. A lésbica é lembrada quando a hetera precisa de ajuda emocional ou outras ajudas. Com a amiga lésbica, ela desabafa, em especial no tocante aos seus namorados ou homens com quem se relaciona. A interpretação da mulher hetera é que a lésbica odeia homens e logo, vê nessa mulher a possibilidade de compartilhar a sua raiva momentânea. Algo que não se sente tão à vontade em fazer com outras mulheres heteras que dedicam seus afetos aos homens. Logo que essa mulher hetera se sente melhor, depois que desabafou e despejou todos os seus sentimentos negativos em cima da mulher lésbica, ela se sente resolvida e muitas vezes, volta a se relacionar com o homem alvo da raiva. Agora se sentindo bem consigo mesma, ela vai buscar suas amigas heteras para se encontrar, se divertir, se apoiar e se admirarem. Frequentemente quando a lésbica precisa da mesma ajuda emocional, a hetera não se coloca disponível, não tem tempo. Além da exploração emocional, há também abandono afetivo.

16 de agosto

Parte 8 Quais são as pautas lésbicas e por que a imprensa não está falando sobre elas?

Ginecologistas que violentam partes íntimas de lésbicas em exames médicos. Empresas que não fabricam camisinhas para o sexo lésbico. Estado que não incentiva empresas a fabricarem camisinha para sexo lésbico, deixando lésbicas à mercê das IST’s. Empresas que não contratam lésbicas não-feminilizadas. Lésbicas negras à margem em sub-empregos. Famílias que expulsam jovens lésbicas de casa e que não tem para onde ir. Igrejas que violentam psicologicamente mulheres lésbicas forçando-as a se relacionarem com homens ou expulsando-as das igrejas. Pais, tios, primos e irmãos que estupram mulheres lésbicas da família. Vizinhos que assassinam vizinhas lésbicas. Donos de estabelecimentos que expulsam casais lésbicos de bares, restaurantes. Homens que espancam mulheres lésbicas nas ruas. Mulheres lésbicas obrigadas a se prostituir. O questionamento lésbico sobre a feminilidade. O incentivo lésbico à assertividade em mulheres. A violência psicológica contra lésbicas cometida por membros da família. O isolamento social que grupos de pessoas reforçam contra mulheres lésbicas: no ambiente de trabalho, em círculos de “amizade”, em movimentos sociais. As ameaças verbais que homens proferem contra lésbicas não-feminilizadas nos espaços públicos. Homens que fetichizam casais de mulheres lésbicas. A pornografia que explora mulheres, distorce a sexualidade de mulheres, promove a violência contra todas as mulheres, inclusive mulheres lésbicas. A ferramenta de busca na internet que apenas em julho de 2019 alterou os algorítimos que associavam a palavra chave “lésbica” com sites de pornografia e violência. Tem pauta sobrando. Por que a imprensa não está falando sobre esses assuntos?

17 de agosto

Parte 9 Quais são as pautas lésbicas e por que a imprensa não está falando sobre elas? Continuação

A heterosexualidade como imposição na vida de mulheres, empurrando mulheres lésbicas desde jovens para relacionamentos com homens. A falta de referências lésbicas na vida social: lésbicas visíveis, lésbicas na mídia, lésbicas nos círculos de amizade, casais de lésbicas e suas famílias que convivem com casais heteros e suas famílias. Violência psicológica em consultórios de psicologia, que reforçam discursos difamatórios contra pacientes lésbicas e as tentam convencer de que estão doentes, de que precisam de cura. Feminilização das mulheres e disforia de gênero em mulheres lésbicas. Falta de referências de mulheres assertivas no discurso social sobre as mulheres. Destransição de gênero de mulheres lésbicas. Mães lésbicas, seja com filhos fruto de um relacionamento com um homem ou casais de lésbicas que gestam ou adotam. Atrizes lésbicas que constantemente interpretam mulheres heteras e raramente tem a oportunidade de interpretar lésbicas. A recorrência de filmes com finais trágicos envolvendo histórias de lésbicas. Casais de lésbicas envelhecendo. Lésbicas que envelhecem sozinhas. Teorias lésbicas. Pensadoras lésbicas que estão produzindo conhecimento atualmente. Teóricas lésbicas nas universidades. Ideias e práticas que não se centram ou se pautam nos homens. As pautas estão aí. A imprensa segue silenciando não apenas sobre elas, mas, sobre todas as pautas feministas que envolvem questionamentos profundos sobre o patriarcado e as estruturas cotidianas de violência e dominação.

18 de agosto

Daniela Alvares Beskow