Atenção à reação: movimentos sociais, escritores e o termo “politicamente correto”

Vivemos um momento histórico onde as lutas de movimentos sociais e camadas da sociedade que se encontram subjugadas pelas parcelas dominantes, ou seja, a maioria da população, se tornam cada vez mais nítidas, fortes e presentes no cotidiano. A reação às violências históricas se fortalece cada vez mais. As estratégias de luta e pautas são diversas, advindas de grande quantidade de grupos, que não expressam um discurso uníssono, pelo contrário, produzem e difundem pensamentos muito diferentes entre si, muitas vezes divergentes. É preciso atenção à reação.

Muitos profissionais da escrita tem começado a refletir sobre as perspectivas e conteúdos abordados em seus textos: romances, dramaturgias, roteiros, poemas, ficção e desenvolvimento criativo da linguagem de forma geral. Muitos desses escritores produzem suas obras a partir do já conhecido: estruturas textuais e perspectivas narrativas que correspondem à anseios emocionais socialmente construídos a partir das estruturas dos regimes de dominação e por isso, mais facilmente difundidas e vendidas. A importância de se questionar o que está dado a partir do material trazido pelos movimentos sociais se dá em função da relação crítica que se estabelece com o contexto onde as obras estão inseridas: a realidade, a sociedade, o contexto atual.

É na relação crítica estabelecida com a realidade que a arte da escrita se potencializa. Se atentando ao fluxo de debates, ações e políticas, enriquecendo o próprio texto a partir das questões em jogo. A transformação social pode ser uma excelente oportunidade para escritores e criadores como um todo reverem suas práticas, aprofundando o caráter de transformação da própria arte, atenta ao que acontece ao redor e resignificando a realidade.

Ao mesmo tempo, puxando o fluxo para baixo como uma pesada âncora, surgem pessoas e grupos resmungando. Em grande parte homens e brancos, mas, nem sempre, bradam em conjunto a palavra mágica, aquela que desqualifica a reação sem retornar com argumentos: “abaixo o politicamente correto”, dizem. Classificam a crítica aos regimes de dominação como “reclamações sem fundamento, especificidades sem correspondência na vida social, particularidades de minorias”, quando em realidade, quem resmunga são esses sujeitos, insistindo em manter a linguagem e circulação de imagens no nível da violência simbólica. Mulheres, pessoas negras, indígenas, população lésbica, gay, em conjunto, são maioria na sociedade. Mesmo alguns desses grandes grupos, por si só já são maioria no Brasil, como as mulheres e população negra. Então vem a pergunta: quem é a minoria afinal? Continuemos a nos debruçar sobre o que a contra-reação reivindica. Querem o fim do que denominam como politicamente correto, utilizando este equivocado termo. Política não é correta nem incorreta, política é o debate entre diferentes visões e argumentos, é a ação, reação, conciliação, proposta, acordo. O termo “politicamente correto” é pejorativo e desqualifica a crítica. Esta estratégia de debate, além de imatura, é desonesta. Palavra-chave que conecta uma vasta rede de lutas, práticas e discursos à uma interpretação distorcida e negativa, reforçando a violência simbólica a qual os sujeitos que reagem, já estão submetidos diariamente. Os que se revoltam contra o que classificam como “politicamente correto” se pensam rebeldes, quando na verdade estão reproduzindo as estruturas moralistas, dominantes, violadoras. Dizem: “façamos o que quisermos, coloquemos em prática nossa liberdade de expressão”. Defendem a liberdade como liberdade de reforçar e praticar a violência. Estão revoltados porque o que tem sido socialmente legítimo está agora sendo questionado.

Violência de nenhum tipo é legítima e nem característica de liberdade. Linguagem e perspectiva podem ser também canal para violência e tem sido, inclusive. E justamente, a autorização social em violentar simbolicamente é o que infringe a liberdade das pessoas em existir sem violência. Liberdade é o oposto de violência e para ser alcançada depende de um contexto coletivo, proporcionado à todos. Legitimidade social para indivíduos violentarem não é sinônimo de liberdade individual. A liberdade individual existe na mesma medida da liberdade coletiva, pois é um contexto e não apenas ações isoladas.

Em suma, aos escritores. Observe se sua narrativa reproduz os velhos estereótipos negativos associados à mulheres, às pessoas negras, às lésbicas, aos gays. Observe se as estruturas de pensamento patriarcal, racista e heteronormativo não estão sendo reproduzidas, colocando as mulheres como frágeis, incapazes, erotizadas e os homens como fortes, sujeitos pensantes e resolvedores de problemas. Os gays como espalhafatosos e as lésbicas como agressivas, mulheres jovens que se relacionam com homens mais velhos, e assim por diante. Esses estereótipos são frutos de contextos de violência contra esses sujeitos e a reprodução destes no seu texto apenas será mais do mesmo. Tem muita coisa acontecendo no terreno dos movimentos sociais, muita coisa boa sendo produzida. Teoria, discurso, perspectiva sendo propostos em material escrito, encontros, áudio e visual. Procure na internet pelas palavras chaves e verá um mundo se abrir. Pesquise, pergunte, converse. O tempo corre e o mundo está produzindo. Atenção à reação.

Daniela Alvares Beskow

Julho/2018