O choque de realidade do congresso brasileiro

Apoiadores da tortura, fanáticos religiosos, aliados de crime parlamentar, acusados e investigados por crimes de corrupção, agressores verbais, machistas. Canalhas, gangsters, ladrões. Para quem não conhecia muito bem o caráter dos deputados brasileiros, teve um choque de realidade no domingo que passou: sim, esses são os representantes do povo, são esses os que representam a população brasileira.

A câmara dos deputados mais parecia um salão de igreja do que a casa pública no domingo de 17 de abril de 2016. Não foram poupadas agradecimentos e rogas à deus e à família. Seria ridículo se não fosse gravíssimo, o parlamento brasileiro tem como uma de suas bases não a ética, a justiça e a democracia, mas, uma entidade religiosa (deus) que nem sequer representa todos os cidadãos brasileiros, dado que o país é composto de indivíduos que atendem à diversas religiões – quando atendem – e ainda que representasse, o Estado é laico! Religião e política são departamentos distintos. Que políticos são esses que parecem se esquecer do básico da política?

Dentre a maioria de falas religiosas houve aquelas que homenagearam torturadores da ditadura militar. Tamanho é o absurdo dessas falas que chega a parecer irreal. Mas não, deputados defenderam, homenagearam, aclamaram a tortura e o assassinato de pessoas em pleno congresso nacional, em alto e bom tom para todo o país ouvir. E foram ovacionados pela maioria dos demais presentes.

Quando políticos de uma país sentem absoluta liberdade em defender posicionamentos completamente fora de contexto, tal como foram as falas religiosas e alguns desses posicionamentos inclusive criminosos – como é o caso de defesa e apologia à tortura – se pergunta onde é que estão as regras básicas da democracia? Ou seja, já não estamos falando de discordâncias em relação à forma como se administra um país e à posicionamentos e argumentos sobre isso, estamos falando de políticos cometendo crimes em plena Casa Pública e de políticos que demonstram nada saber sobre como se conduz processos democráticos de forma profissional. Porque político e política é uma profissão, é um saber que se põe em prática. Está faltando não apenas ética, mas falta de conhecimento sobre a própria prática profissional.

Uma das características básicas da política é o diálogo, o confronto com o outro, com a opinião diferente da sua própria. Diálogo pressupõe respeito, disponibilidade ao debate e antes de tudo, validar o outro como interlocutor, não desqualificando-o, mas, desafiando com argumentos. Conclamar a ditadura – que é o auge da falta de diálogo – é estar no extremo oposto do cotidiano democrático, é estar completamente alheio ao que a própria profissão de político significa. Conclamar deus em um discurso político está muito distante do que significa a prática da política. Deus está ligado ao campo da crença, da fé, da espiritualidade. Política passa pela crença? Sim, porém, na crença no debate objetivo, no funcionamento do diálogo entre os cidadãos. Deus e religião não estão no campo da objetividade, estão no campo da parábola, do dogma, da entrega emocional, se preferirem. Política é argumento, contra-argumento, revisão constante de regras. Política é confronto, leis que se refazem de acordo com a confronto com a realidade. Ok, a democracia representativa ela mesma gera incoerências como essas, onde o indivíduo se confunde com o profissional público. Há outras formas mais democráticas de democracia, como por exemplo, a democracia direta. Mas, por ora, falemos a partir de onde estamos. Por mais que haja falhas na democracia representativa, não pode-se permitir que os eleitos pela população coloquem à frente dos interesses dos cidadãos, interesses de grupos religiosos e criminosos aos quais pertencem.

O pedido de impeachment em curso é ilegal, não tem bases jurídicas e por isso é considerado um golpe parlamentar de Estado.

A maioria dos deputados ontem mostrou suas caras. A maioria da população não acompanha o cotidiano da política de perto, até porque não há mecanismos estatais e públicos que façam essa ponte entre eleitores e eleitos, além da rotina capitalista de trabalho que não deixa tempo à maioria das pessoas para que possam ler, se informar, acompanhar os trabalhos dos políticos e assim elaborar reflexões e argumentos a respeito destes. Adicionada à esse contexto temos a extrema concentração da posse dos meios de comunicação no Brasil, onde a grande mídia veicula dados e informações não apenas de só uma das visões da realidade, como também distorce e mente descaradamente sobre o cotidiano no país. Tudo isso colabora para que a grande maioria das pessoas sequer saiba o nome dos políticos que elas mesma elegeram. Quem dirá saber sobre as leis que seus representantes aprovam, sobre as alianças que realizam, sobre os projetos que barram? A população brasileira não conhece seus políticos.

Ontem tivemos uma amostra do show de horrores que é diariamente o cotidiano do parlamento brasileiro. Muitos espectadores ficaram chocados. Outros preferem seguir aqueles que elegeram como líderes, como seguem o papa e o padre dentro da igreja. Calados, confiantes de que chegarão ao paraíso através daqueles que gritam em alto e bom som que dedicam sua prática política à deus. E que confiam o futuro do seu país não no debate de ideias e ações, mas, nas mãos de uma entidade – deus – invisível, intocável, que sequer está disponível para o debate e para o questionamento, situação oposta à situação de um político, que deve ser cobrado por cada atitude que toma. É a esse tipo de pessoa que entregam a confiança em gerir um país. Aos que ficaram chocados, enfim uma visão sóbria do que são a maioria dos políticos eleitos nessas últimas eleições. Políticos que valorizam mais seus maridos, suas esposas, netos e filhas, do que a regra básica da democracia: a ética, o diálogo, o respeito às instituições, o confronto de ideias e o respeito à legalidade.

Em cima da fé e não da objetividade, vimos ontem a grande maioria dos deputados passar por cima da lei e desrespeitar a constituição. O panorama da legalidade parece distante. Seguimos pasmos, acompanhando a massa religiosa comandando a coisa pública.

Daniela Alvares Beskow

Abril/2016

Como citar essa coluna:

Beskow, Daniela Alvares. O choque de realidade do congresso brasileiro. Palavra e Meia, Abr. 2016. Colunas. Disponível em: <http://www.palavraemeia.com/colunas/o-choque-de-realidade-do-congresso-brasileiro/> Acesso em: [inserir data].